A Escritura afirma que Deus é justo e não há mal nele. João diz que Deus é luz e nele não há treva alguma (1Jo 1.5). Entretanto, esta maravilhosa verdade não infere que Deus tenha criado o mal. Mesmo não sendo mau, ele criou o mal (Is 45.7). Deus não apenas criou o mal, como também decretou as ações de sua criação de forma tal que o mal cumpra seu bom propósito. Deus, em seu plano providencial, usa o mal para dar glória a si mesmo por meio do Senhor Jesus Cristo; ele usa o mal para apresentar seus atributos; ele usa o mal para condenar os réprobos; ele usa o mal para cumular os eleitos de riquezas da graça.
O que significa o fato de Deus ter criado o mal? É o mal uma substância palpável? É um objeto auto-existente? De acordo com a Escritura, o mal procede do coração. Do bom coração procedem coisas boas e do coração mau procedem coisas más. A afirmação “Deus criou o mal” implica ter Deus trazido à existência um coração mau, porque um inexiste sem o outro. O coração mau é de onde o mal flui. O mal não subsiste à parte da prática do que é mau — objetos inanimados como rochas ou árvores não podem ser moralmente maus da mesma forma que não podem ser moralmente bons; o mal pode provir apenas de indivíduos que pensam e agem, como homens ou anjos.
Não há árvore boa que dê mau fruto; nem tampouco árvore má que dê bom fruto. Pois cada árvore se conhece pelo seu fruto. Os homens não colhem figos dos espinheiros, nem dos abrolhos vindimam uvas. O homem bom do bom tesouro do seu coração tira o bem, e o homem mau do mau tesouro tira o mal; porque a sua boca fala o de que está cheio o coração (Lc 6.43-45).
Esta é uma distinção importante. Examinemos mais de perto as palavras do Senhor. Ele declara que a árvore é boa ou má, e é a árvore que dá fruto mau ou bom. Se imaginarmos esse cenário com árvores e frutos literais, físicos, ficará claro que a árvore deve existir antes de o fruto ser produzido. Como a macieira produz maçãs, a árvore má dá frutos maus. Semelhantemente, a laranjeira produz laranjas, e a boa árvore produz bons frutos. Primeiro a árvore, depois o fruto — primeiro o coração, e então o fruto do coração. O bom coração produz boas obras, e o coração mau produz maus atos. Afirma-se em Provérbios que o coração do ímpio “sempre maquina o mal” (6.14).
O Senhor diz ainda mais: “a boca fala do que está cheio o coração”. Podemos imaginar o volume do coração sendo preenchido até o limite com pensamentos maus e ímpios. O transbordamento dessa maldade procede da boca e das ações. O mal invisível, residente no coração, torna-se visível na boca e nos atos pecaminosos. Percebemos novamente a preponderância da maldade no coração, e só depois de o mal existir no coração surge sua manifestação. O pecado realizado é resultado do pecado existente no interior. O mal exterior resulta do mal interior.
Portanto, para Deus ter criado o mal, segundo este ensino, vislumbramos uma ordem lógica necessária:
1) A criação do coração mau do qual o pecado procede;
2) A procedência do pecado a partir do coração mau em conformidade com o plano de
Deus.
O mal não brota simplesmente do nada, tomando Deus de surpresa — ele foi planejado e proposto por Deus a fim de cumprir seu propósito. Alguns acreditam que o coração humano atua à revelia do controle divino. Muitos calvinistas argumentarão acertadamente contra a liberdade da vontade em relação à tomada da decisão para crer no Senhor Jesus Cristo, ou para realizar algum bem. Eles chamam isso negação total do livre arbítrio. Na mesma medida em que eles negam o livre arbítrio, acabam por afirmá-lo com a mesma intensidade no que diz respeito ao pecado. Eles dirão que em relação ao que é bom o homem não possui liberdade, mas em relação ao que é mau, o homem é livre. Em outras palavras, Deus causa todo o bem, mas o homem causa todo o mal. A vontade com certeza não é livre para o bem, mas é livre para fazer o mal? Paulo declara que o homem é escravo do pecado ou da justiça (Rm 6.17,18). Dessa forma, o homem não é livre para praticar o bem, nem para praticar o mal, por ser sempre escravo.
Precisamos perguntar-nos: é o pecado, por sua vez, escravo de Deus? A justiça também é serva de Deus? A Escritura ensina que todas as coisas são servas de Deus — ele é soberano sobre tudo, incluindo os pecados dos seres humanos. Vários exemplos podem ser, e serão, mostrados acerca de Deus incitar ativamente sua criação a pecar. Todas essas passagens da Escrituras mostram que Deus criou o mal e, depois de fazê-lo, não relegou o controle do mal às suas criaturas. Ele detém plenamente o controle soberano sobre todas as criaturas para que elas realizem todos os propósitos por ele estabelecidos.
Deus não espera que o homem decida pecar de forma a cumprir sua vontade — ele faz o homem pecar da forma exata por ele planejada! Dois grandes exemplos disso são a morte do Senhor Jesus Cristo na cruz, e a venda de José aos ismaelitas. Todo o plano de Deus a respeito da salvação poderia ter sido frustrado se os assassinos do Messias não o tivessem matado exatamente da forma ordenada por Deus. O propósito divino teria sido completamente arruinado se o Messias não tivesse sido pregado à cruz, sendo “entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus”. Deus predestinou exatamente a ocorrência de sua morte (At 2.23; 4.28). Essa predeterminação deveria incluir cada um e todos os pecados específicos da totalidade das pessoas que tomaram parte nesse ato. Deus não só abandonou essas pessoas ao pecado para fazerem o que melhor lhes conviesse, mas ele controlou-lhes os pecados para que pudessem realizar tudo o que fora preordenado. Também nesse sentido José foi vendido por seus irmãos a mercadores midianitas por vinte moedas porque Deus ordenara exatamente os pecados que conduziriam à realização desse acontecimento. Deus deixaria ao livre arbítrio humano a possibilidade de vender José?
O que aconteceria se eles tivessem preferido não pecar dessa forma — vendendo-o? Todo o plano de Deus a respeito da salvação teria sido arruinado pelo fato de José não ter sido levado ao Egito? Poderíamos acrescentar muitos outros exemplos, como o de Judas — o que aconteceria se ele tivesse escolhido beijar outro homem e não Jesus? Qual seria o resultado se Jacó não tivesse iludido seu pai para receber-lhe a bênção no lugar de Esaú? O que aconteceria se os judeus não tivessem dado as costas a Jesus como Senhor? Todos esses pecados aconteceram exatamente dessa forma para que o plano de Deus fosse cumprido, então, Deus deve controlar ativamente o coração conduzindo-o ao pecado a fim de causá-lo exatamente como estabelecera.
Disse Jeová a Moisés: Quando te tornares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todas as maravilhas que te hei posto na mão; mas eu endurecerei o seu coração, eele não deixará ir o povo. Dirás a Faraó: Assim diz Jeová: Israel é meu filho, meu primogênito. Eu te disse: Deixa ir meu filho, para que ele me sirva; mas tu recusaste deixá-lo ir: eis que eu matarei a teu filho, teu primogênito (Êx 4.21- 23).
O Senhor informa a Moisés seu plano para endurecer o coração do Faraó de tal forma que ele pecaria ao não obedecer à ordem divina de deixar os israelitas partir. Em um exame objetivo dessa passagem, e de muitas outras semelhantes a ela, vê-se que Deus é a causa do pecado do Faraó. Alguns farão a distinção entre o envolvimento divino primário e secundário; outros tentarão diferenciar as causas imediatas e indiretas. Esses argumentos podem ser úteis à melhor compreensão sobre como Deus usa os meios para alcançar seus decretos, mas em última instância eles não mudam o fato de que Deus causa e controla o pecado para realizar sua vontade. Quer Deus seja a causa primária, secundária, ou qualquer outra causa, deve-se deixar claro que ele é a última causa controladora.
Paulo, na aplicação do exemplo do Faraó na carta aos Romanos, diz que Deus “endurece a quem ele quer” (Rm 9.18). O verbo “endurecer” é a palavra grega sklērynō, na forma presente do indicativo ativo no versículo 18. O sujeito é Deus; portanto, a voz ativa do verbo “endurecer” aponta para Deus como quem endurece ativamente. Apesar de Paulo usar o Faraó como exemplo, ele não é o único exemplo de alguém com o coração endurecido. Isto também é aplicável a toda a criação de Deus: ele endurece ativamente o coração de quem desejar.
Mas Seom, rei de Hesbom, não nos quis deixar passar por sua terra, porque Jeová teu Deus lhe endureceu o espírito, e lhe fez obstinado o coração, para to entregar nas mãos, como hoje se vê. Disse-me, pois, Jeová: Eis que comecei a entregar-te Seom e a sua terra; entra a desapossá-lo, para que recebas por herança a sua terra. Então Seom nos saiu ao encontro, ele e todo o seu povo, para nos dar batalha em Jaza. Jeová nosso Deus nô-lo entregou, e ferimo-lo a ele, e a seus filhos e a todo o seu povo. (Dt 2.30-33).
O Senhor endureceu o coração do rei de Hesbom para que ele se opusesse a Israel e fosse morto na batalha. Deus endureceu ativamente seu coração para alcançar o resultado desejado da vitória de Israel. Deus não esperou que o rei se opusesse a Israel por conta própria. Ele endureceu ativamente o coração do rei para que este se opusesse a Israel exatamente da forma desejada, para que o rei fosse completamente destruído por causa dele.
Vemos esse mesmo conceito em Josué:
Por muito tempo pelejou Josué contra todos esses reis. Não houve cidade que fizesse paz com os filhos de Israel, à exceção dos heveus, habitantes de Gibeom: a todas tomaram à força de armas. Pois de Jeová veio o endurecimento dos seus corações, para saírem à guerra contra Israel, a fim de que fossem destruídos totalmente, e não achassem piedade alguma, porém fossem de todo exterminados, como Jeová ordenou a Moisés (Js 11.18-20).
A destruição das nações que se opuseram à marcha de Israel através da terra prometida foi realizada por Deus — que ativamente endureceu o coração delas para levá-las à batalha. Deus as fez pecar contra a grande nação de Israel para sofrerem a ira e o poder de Deus e serem totalmente destruídas. Deus não só endurece ativamente o coração para batalhas e destruição. Ele também o faz para que as pessoas não creiam no Evangelho e sejam salvas:
E, embora tivesse feito tantos sinais na sua presença, não creram nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz: Senhor, quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor? Por isso, não podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim curados (Jo 12.37-40).
O endurecimento ativo do coração por parte de Deus pode ser visto em escala maior que as batalhas de Israel. Ele pode ser percebido diariamente em toda a história. Existem homens ímpios e incrédulos que nunca acreditarão no Senhor Jesus Cristo porque Deus não lhes permitirá fazê-lo — de fato, Deus faz com que eles não creiam. Deus não só “permite” a incredulidade desses homens, mas ele os controla de modo direto para que sejam mantidos sob juízo até o Senhor vir pela segunda vez em glória. Pedro diz que Deus “reserva aos injustos sob castigo para o dia do juízo” (2Pe 2.9). “Reservar” é o presente infinitivo ativo de tēreō, o qual demonstra que Deus está presente e mantém continuamente os réprobos em um estado que trará a punição no dia do juízo.
Pois quê? O que Israel busca, isso não tem conseguido, mas a eleição o conseguiu; e os mais foram endurecidos, como está escrito: Deu-lhes Deus um espírito de torpor, olhos para não verem e ouvidos para não ouvirem até o dia de hoje (Rm 11.7,8).
Os demais — os não-eleitos — foram endurecidos. Como? Deus lhes deu um espírito de torpor e olhos cegos e ouvidos surdos! Como Deus ousaria fazer uma coisa dessas — impedi-los propositadamente de ver e ouvir o Evangelho mediante o qual poderiam ser salvos? Retrucamos com Deus por causa disso, ou reconhecemos e nos regozijamos no fato de que ele, de forma ativa, age no coração dos réprobos endurecendo-os contra o Evangelho?
Este tema se destaca ao longo de toda a Escritura, especialmente nas cartas de Paulo. É por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira, a fim de serem julgados todos quantos não deram crédito à verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça (2Ts 2.11,12). Paulo diz de modo específico que Deus faz os homens crer no que é falso, e que ele o faz para que estes sejam julgados e condenados por terem amado o mal, extraindo prazer de sua perversão. Da mesma forma que a Escritura diz que o homem não é livre para fazer o bem, ela também afirma que o homem não está livre do controle de Deus para praticar o mal.
Ainda que exista uma aparência de piedade ao tentar extrair o controle divino de sobre o pecado, ao fazê-lo estaríamos negando o claro e reiterado ensino bíblico de que Deus endurece o coração, envia um poder sedutor, e controla ativamente sua criação para que cumpra sua vontade. A soberania de Deus não pára no pecado — seu plano soberano inclui o pecado, ao qual ele controla.
Esse controle sobre o pecado e o mal não se estende apenas aos réprobos, aos quais Deus reserva para o dia do juízo, mas também sobre os eleitos:
Atenta lá do céu, e olha lá da habitação da tua santidade e da tua glória; onde está o teu zelo, as tuas grandezas? O anelo das tuas entranhas e as tuas misericórdias estancaram para mim. Pois tu és nosso pai, ainda que Abraão não nos conhece, e Israel não nos reconhece; tu, Jeová, és nosso pai; nosso redentor desde a antigüidade é o teu nome. Por que nos fazes, Jeová, errar dos teus caminhos, e endureces o nosso coração para te não temermos? Volta por amor dos teus servos, das tribos da tua herança. (Is 63.15-17)
Por que Deus nos faz desviar de seus caminhos? Por que ele nos endurece o coração para que não o temamos? Ele procede dessa forma para que permaneçamos como vasos de barro, “a fim de que a excelência do poder seja de Deus, e não venha de nós” (2Co 4.7). Por meio do nosso pecado a grandeza de Deus, mediante sua graça e misericórdia, é demonstrada. Isaías diz que Deus faz seu povo santo pecar, por que outro motivo dir-se-ia a respeito do coração mau — que se desvia do caminho de Deus? Tal coração é pecador, dado e controlado por Deus para produzir exatamente o que cumprirá seu perfeito propósito.
O controle do pecado e do mal por meio do endurecimento ou amolecimento do coração não torna Deus pecador ou mau. Ele afirma seu lugar como governante soberano do universo que criou. Afirma que ele tem o propósito de glorificar a si mesmo por meio de cada ação, e também para beneficiar seus eleitos. Paulo diz: “Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28). Ao dizer que Deus faz todas as coisas para o bem, ele inclui o que é pecaminoso e mau. O pecado põe o cristão de joelhos — o lugar próprio de submissão perante o santo Deus. Paulo diz em Efésios 1.11 que Deus “faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade”. Devemos entender isso como Deus dizendo que “faz todas as coisas boas conforme o conselho da sua vontade”? Não. O propósito de Deus inclui os pecados dos réprobos bem como os dos eleitos.
A diferença entre os dois grupos é o Senhor Jesus Cristo, e aqueles pelos quais ele derramou seu sangue. Só os pecados do eleito, vencidos na cruz, não serão punidos. Só aquele a quem o Pai elegeu, o Filho redimiu, e o Espírito regenerou terá vida eterna. O cristão não deveria sentir tremor ao saber que nosso Deus justo e santo controla todas as coisas — tendo predestinado cada uma e todas as coisas que acontecem. O cristão deve reconhecer que o bem e o mal possuem um propósito no plano de Deus, e que cada uma dessas partes é necessária para redundar na plena glorificação de Deus.
A Bíblia ensina a soberania absoluta de Deus em relação a todas as coisas, incluindo o bem e o mal. O próprio Deus é totalmente bom em todos os seus caminhos, e ele demonstra sua justiça de várias formas, incluindo os pecados de homens e demônios. O pecado é a tela preta sobre a qual Deus pinta de branco seus atributos — misericórdia, justiça, graça, paciência, ódio e amor. A Escritura ensina que Deus não meramente permite que suas criaturas pequem, mas ele ativamente causa o endurecimento do coração deles contra seus mandamentos a fim de que elas pequem contra o Senhor. Nesses pecados está incluído o ódio contra Deus, particularmente em relação a Jesus Cristo, quando os réprobos rejeitam totalmente o Evangelho e Deus (Jo 12.37-40).
A aceitação da soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas é algo impossível para a alma não-regenerada (1Co 2.14). Os réprobos rejeitarão esse ensino porque eles não crêem no Deus santo da Bíblia. Eles temem a Deus, mas por que não lhe confiam a vida para que ele a dirija? O cristão deve aceitar a Deus e regozijar-se nele da forma em que ele se revela na Bíblia. Toda Escritura é inspirada por Deus (2Tm 3.16); portanto, toda a Escritura explica exatamente como Deus é.
Gostaria de dar continuidade a este assunto com mais alguns pontos. A soberania absoluta de Deus impacta todas as doutrinas da Bíblia. Dessa forma, precisamos nos esforçar para aplicá-la corretamente a cada uma delas. Uma das dificuldades é tentar fazer a soberania de Deus e a responsabilidade humana trabalharem juntas ao usar expressões do tipo “isso é um paradoxo”. Existe uma crença amplamente difundida entre os cristãos de que a responsabilidade pressupõe liberdade. Quando algo é “pressuposto”, ou seja, suposto de antemão, ou presumido por verdadeiro, isso geralmente ocorre sem evidências bíblicas claras. De modo específico, referimo-nos à crença de que para o homem ser responsabilizado por seus pecados, ele precisa ser livre para cometê-los. Os arminianos, de forma especial, ensinam isso, com outras idéias semelhantes de que para amar a Deus, o homem precisa ser livre para amá-lo ou rejeitá-lo. De acordo com os arminianos, ser alcançado de forma irresistível a fim de amar a Deus por sua obra graciosa não constitui verdadeiro amor. Eles afirmam que o verdadeiro amor pressupõe a liberdade para amar. Da mesma forma, também inferem a liberdade para pecar a fim de que alguém seja responsabilizado pelo pecado.
A idéia é que se o homem não é livre para pecar; se Deus tiver predeterminado que o homem pecará, então Deus não pode considerar o homem responsável pelo pecado. Esse raciocínio parece fazer sentido absoluto para a mente humana. O problema é que muitas vezes nossa mente carnal não entra em acordo com a verdade revelada por Deus — nós, como cristãos regenerados, precisamos sempre lutar para perceber que as crenças provenientes do “senso comum” realmente não possuem base bíblica. Ainda que esse pressuposto pareça fazer sentido, ele não é encontrado na Bíblia e não pode ser comprovado como verdade. A idéia de que a responsabilidade pressupõe liberdade do controle divino não é encontrada em nenhuma parte da Bíblia. De fato, tampouco a idéia de que o homem é livre do controle de Deus, em qualquer sentido, é encontrada na Bíblia.
Ora sabemos que tudo o que a Lei diz, aos que estão debaixo da Lei o diz, para que toda a boca fique fechada, e todo o mundo esteja sob o juízo de Deus; porquanto por obras da lei nenhum homem será justificado diante dele, pois, pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. (Rm 3.19,20) Paulo diz aqui, e em outros lugares (Rm 7), que Deus deu a lei para mostrar ao homem seu pecado. A lei traz o conhecimento do pecado — ela não possuía a intenção de ser uma forma para justificar o homem perante Deus. O conhecimento do certo e do errado, do bem e do mal, tem o efeito de tornar o homem responsável pelo pecado. A revelação de Deus do conhecimento do bem e do mal ao homem por meio da lei é exatamente como Deus o torna responsável. Precisamos concluir, então, que se Deus não tivesse revelado sua santa lei à humanidade, o homem não teria sido responsabilizado por ele em relação ao pecado. Paulo não ensina a inclusão de qualquer tipo de liberdade neste ponto.
Deus não só revela sua lei por meio da lei escrita, mas ele a inscreveu no coração de todos os homens, porque quando eles “procedem, por natureza, de conformidade com a lei [...] mostram a norma da lei gravada no seu coração” (Rm 2.14,15). A consciência humana será suficiente para condená-lo perante Deus no dia do juízo. A exigência de que o pecado seja cometido com o uso da liberdade, à parte do controle divino, para poder ser julgado não está presente na Bíblia. A única coisa exigida para que uma pessoa seja considerada responsável é o Juiz para considerá-la responsável. Tudo o que é necessário para considerar uma pessoa responsável é a decisão divina de proceder dessa forma.
Isso faz ecoar novamente o conceito da imputação. Na aliança da graça do eleito com Deus, ele decidiu imputar o pecado do eleito na conta do Senhor Jesus Cristo, em lugar de colocá-lo na conta do eleito (2Co 5.18-21). Deus escolheu, sem considerar qualquer princípio predominante, mas inexistente da responsabilidade, imputar o pecado ao Cordeiro inocente — o Messias. Cristo não era livre para cometer o pecado do eleito, tampouco era capaz de cometer esse pecado, todavia, ele foi responsabilizado pelo pecado mediante o decreto divino para que ocorresse dessa forma. Isto também contradiz o conceito carnal de justiça. Por que o Cristo inocente foi responsabilizado pelo pecado do eleito? Porque Deus escolheu fazê-lo responsável. Por que o réprobo é responsável pelo próprio pecado? Porque Deus quis torná-lo responsável. A responsabilidade não pressupõe liberdade; ela pressupõe um Juiz e a revelação da lei pela qual alguém será obrigado a responder.
Como dissemos anteriormente, a Escritura declara de modo específico que Deus endureceu de forma ativa o coração do Faraó diversas vezes, bem como o coração dos egípcios. Esta simples verdade é repetida muitas vezes por todo o livro de Êxodo e também em Romanos por Paulo. Se quem afirma que a responsabilidade preconiza liberdade estiver correto, então, certamente Deus não teria punido Faraó ou os egípcios por terem o coração mau. Porém, lemos que ele procedeu exatamente assim. Na verdade, Paulo antecipa esta objeção ao imaginar a resposta do contraditor: “De que se queixa ele ainda?”, depois de ter declarado que Deus endurece a quem quer (Rm 9.18,19).
Por uma questão de clareza, podemos expandir esta pergunta para algo semelhante a: “Por que Deus ainda responsabiliza o homem pelo coração duro, se Deus é quem faz o coração ficar desse jeito?”, ou: “O homem é incapaz de resistir à vontade de Deus, e a vontade de Deus é que o homem tenha um coração duro; portanto, por que Deus ainda deseja que o homem preste contas de si mesmo?”. Apesar de essas perguntas aparentemente serem corretas, e fazê-las parece ser algo correto e bom para a mente carnal, a Escritura diz que elas não devem ser formuladas (v. 20-23). Não faria qualquer sentido Paulo antecipar essa objeção a menos que houvesse uma razão, e o motivo é que ele está ensinando claramente a soberania de Deus sobre os pecados da humanidade. A objeção a que ele responde é uma óbvia objeção carnal contra essa verdade, e no corpo da réplica está a resposta ao suposto “paradoxo” da soberania de Deus e da responsabilidade humana. Não é mistério como estas duas verdades interagem: simplesmente Deus decidiu que as coisas seriam desse modo. O homem não é livre e tem que prestar contas a Deus.
Este entendimento a respeito do controle soberano de Deus sobre o bem e o mal destrói conceitos típicos do dualismo. Algumas pessoas hoje crêem que Deus está em guerra contra Satanás e seu reino das trevas. Elas desejariam nos fazer acreditar que Deus deseja que toda a humanidade estivesse do seu lado; entretanto, ele tem que consentir com a perda de almas para o diabo quando o homem se recusa a crer em Cristo para salvar-se. Deus não está em nenhuma guerra, ainda que para o ser humano exista uma batalha espiritual subjetiva contra o mal. Paulo diz que devemos nos vestir com a armadura de Deus, e brandir a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus, contra nossos adversários (Ef 6.13-17). Desse modo, a batalha entre o bem e o mal está no primeiro plano da experiência de todo cristão. Não podemos tomar essa guerra, como a experimentamos, e colocar Deus na mesma posição ocupada por nós. É claro que ele está acima de todas as criaturas, e que todas elas — boas e más — prestam contas apenas a ele. O exemplo de Satanás pedindo permissão a Deus para agir contra Jó esclarece perfeitamente o ponto (Jó 1.8-12) — Satanás só pode agir contra Deus quando a ação está dentro da vontade de Deus.
O mesmo pode ser afirmado a respeito de Pilatos quando o Senhor Jesus lhe disse: “Não terias sobre mim poder algum, se ele te não fosse dado lá de cima” (Jo 19.11). Não houve luta entre as forças do bem e do mal aos olhos de Deus — ele já predeterminara tudo o que havia de acontecer (At 2.23; 4.28) e dera a Pilatos a autoridade de fazer o mal contra Cristo. Alguém poderia declarar justamente ter Deus determinado que Pilatos fizesse o mal contra Jesus, porque “Como correntes de água é o coração do rei na mão de Jeová, ele o inclina para onde quiser (Pv 21.1). O salmista diz que Deus muda o coração para que “odeiem o seu povo, e usem de enganos para com os seus servos” (Sl 105.25). Claramente o coração não está livre do controle de Deus — ele o muda como quiser! No livro da revelação de Cristo a João, o Apocalipse, lemos que “em seu coração incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma e dêem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus” (Ap 17.17). Aqui, Deus controla o coração dos réprobos de modo tal que eles executarão seu propósito, e este é que eles sigam a besta para serem condenados.
O propósito divino inclui o pecado do homem! Deus controla o coração do homem da mesma forma que controla os passos humanos: “Os passos do homem são dirigidos por Jeová, como, pois, poderá o homem entender o seu caminho?” (Pv 20.24). Cada processo; cada momento; cada ocorrência; todas as coisas debaixo do sol estão sob o controle soberano de Deus e, contudo, Deus considera o homem responsável pelo pecado. Isto não é um “paradoxo”, como muitas pessoas gostam de afirmar. Paradoxo nada mais é que um termo acadêmico para designar uma contradição — coisa inexistente na Bíblia. A resposta ao suposto paradoxo é simplesmente que a liberdade da criatura não é um pré-requisito para a criatura ser responsável perante Deus. A decisão divina de ser Juiz é o pré-requisito para a responsabilidade humana. O paradoxo aparente só surge quando a responsabilidade é atrelada incorretamente à liberdade. A Bíblia não coaduna com essa união; portanto, não devemos fazê-la.
Apesar de ser verdadeiro que Deus controla todas as coisas, também é verdade que nossa jornada diária inclui a luta contra o pecado. Deus não necessita lutar contra o mal, mas ele decretou que nos alistássemos para essa guerra. Paulo diz que sua carne milita contra a mente (Rm 7.14-25). Se não quisermos declarar guerra ao pecado, com certeza não somos filhos regenerados de Deus. Essa guerra é onde podemos aplicar o conhecimento da soberania divina absoluta para nos ajudar na luta. Devemos perceber que é apenas mediante a obra consumada por Cristo na cruz que podemos escapar do pecado. Só por meio do arrependimento outorgado por Deus que nossa mente está sendo sempre purgada da injustiça — experimentando o perdão de nossos pecados. O perdão experimental não é só um acontecimento temporário, ele prosseguirá até sermos revestidos com corpos glorificados (1Jo 1.6-9). A aplicação prática do controle divino soberano sobre o pecado é podermos confiar que mesmo nos piores momentos, Deus está no controle. Quando nos recordamos disso precisamos nos regozijar, independentemente das circunstâncias.
Às vezes, um período terrível de pecados é exatamente o que Deus envia para nos trazer de volta ao foco em Cristo, lembrando que “onde aumentou o pecado, transbordou a graça” (Rm 5.20).
O fatalista tomará este ensino a respeito da soberania de Deus e dirá não haver nada que possa fazer, por isso ele pode desistir. O cristão receberá este mesmo ensino e se alegrará pelo fato de a vontade de Deus estar sendo cumprida — o propósito divino é realizado. A diferença entre o fatalista e o crente na Bíblia é que o primeiro opina que não importa o que aconteça, o resultado será o mesmo. O fatalista erra ao não entender que Deus usa meios, e esses meios são o que tornam o objetivo real. Ele dirá coisas semelhantes a: “Mesmo que eu parasse de pecar, Deus me lançaria no inferno, se ele quisesse”. O que ele não percebe é que seu pecado foi planejado, decretado e controlado por Deus para levá-lo ao inferno, da mesma forma que o pecado do eleito foi planejado, decretado e controlado por Deus para levá-lo à tristeza conducente ao arrependimento, “a tristeza segundo Deus produz arrependimento para salvação” (2Co 7.10).
Na nossa aplicação prática do que a Bíblia ensina a respeito da soberania de Deus, não devemos nos tornar fatalistas. Continuemos nossa luta subjetiva contra o pecado na mente: “Peleja a boa peleja da fé” (1Tm 6.12), como Paulo instruiu Timóteo, mas ao fazê-lo, confessemos que a luta estaria perdida se Deus não tivesse assegurado nossa vitória por meio da pessoa e obra de Jesus Cristo na cruz. Os decretos foram estabelecidos, a vitória está garantida, e já sabemos como a história acabará; contudo, nossa luta continua até o Senhor vir em glória. Tanto quanto nos foi ordenado, devemos nos “abster de toda a forma do mal.” (1Ts 5.22), crendo que Cristo voltará em breve para nos libertar deste corpo de morte.
Se o apóstolo Paulo lutou tão intensamente contra o pecado, não devemos esperar tratamento diferente. Alguns dizem que Paulo falava de sua vida ainda não regenerada, em Romanos 7, ao afirmar: “Pois não faço o bem que quero; mas o mal que não quero, esse pratico” (v. 19). Com certeza tais pessoas não compreendem a graça e nem entendem o nojo de nosso pecado diário. A luta de Paulo ilustra que devemos nutrir esperanças em relação ao futuro, e precisamos nos esforçar para obedecer a Deus e mortificar-nos em relação ao pecado; entretanto, o conforto está em saber que Deus mantém o controle mesmo após termos pecado. Esperamos ansiosamente pelo tempo glorioso em que não mais haverá pecado, mas também podemos olhar para trás, para nossos muitos pecados, com a
capacidade de concordar com Deus que seu plano é muito superior a qualquer alternativa.
Tradução: Rogério Portella
Nenhum comentário:
Postar um comentário