Então tu, que ensinas a outrem, não ensinas a ti mesmo? (Rm 2. 21-22) Ainda que os termos elogiosos por ele expressos até agora sejam numerosos, de tal modo que os judeus podiam com justiça tomá-los como uma grande honra, uma vez admitido que as marcas do caráter genuíno não estavam ausentes. Entretanto, visto que todas essas marcas outra coisa não eram senão meios, ou graças, as quais até mesmo os ímpios podem possuir e corromper pelo abuso, nunca são suficientes para que sejam constituídas em verdadeira glória. Porém Paulo, não satisfeito com simplesmente censurar e repreender sua arrogância em confiar tão-somente em tais qualificações, converte suas palavras de louvor em reprovação. Aquele que não só torna inúteis os dons divinos, os quais, por outro lado, são de grande valor e dignidade, mas também os vicia e conspurca por meio de sua depravação, na verdade merece a reprovação máxima. Tal indivíduo é um conselheiro perverso que não atina com o seu próprio bem, e é sábio somente em benefício de outrem. Paulo, portanto, mostra que o louvor que eles [judeus] apropriaram para si mesmos comprovou a própria desgraça deles.
Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Parece que a alusão do apóstolo, aqui, é ao Salmo 50.16-18, onde Deus diz:
"Mas ao ímpio, diz Deus:
Que fazes tu em recitar os meus estatutos,
e em tomar a minha aliança em tua boca?
Visto que odeias a correção,
e lanças as minhas palavras para detrás de ti.
Quando vês o ladrão, consentes com ele,
e tens a tua parte com adúlteros."
Esta reprimenda era aplicada aos judeus nos dias de outrora, que confiavam no mero conhecimento da lei e viviam não melhor do que se não tivessem lei alguma. A não ser que tomemos muito cuidado, a lei se voltará contra nós, neste presente tempo. De fato, o mesmo pode-se aplicar a muitos que se gabam de algum conhecimento extraordinário do evangelho, e todavia se entregam a toda sorte de devassidão, como se o evangelho não fosse a norma de vida. Portanto, sejamos precavidos em relação a uma atitude de descuido em relação ao Senhor, tendo em mente o gênero de juízo que ameaça esses charlatães palradores, os quais ostentam a Palavra de Deus esgrimindo-a com sua língua bigúmea.
Tu, que detestas os ídolos, roubas-lhes os templos?
Paulo, habilidosamente, compara sacrilégio e idolatria como sendo virtualmente a mesma coisa. Sacrilégio é simplesmente a profanação da majestade divina, um pecado não ignorado pelos poetas pagãos. Por esta razão, Ovídio [Metamor. III] acusa Licurgo de sacrilégio, por desprezar os ritos de Baco; e, em seu Faustos, ele se refere às mãos que violaram a majestade de Vênus como sendo um ato sacrílego. Entretanto, visto que os gentios atribuíam aos ídolos a majestade de seus deuses, eles consideravam um ato sacrílego somente quando alguém saqueava o que era dedicado em seus templos, nos quais, segundo criam, toda a religião estava centrada. Assim, no tempo presente, quando a superstição prevalece em detrimento da Palavra de Deus, o único gênero de sacrilégio que se reconhece é o furto daquilo que pertence às igrejas, visto que seu único deus está nos ídolos, e sua única religião consiste no fausto e na abundância.
Aqui somos advertidos, primeiramente, a não incensar a nós mesmos e a menosprezar a outrem quando nada mais fizemos senão observar apenas uma parte da lei; e, em segundo lugar, a não blasonarmos em remover apenas a idolatria externa, enquanto não nos esforçamos em escorraçar e erradicar a impiedade que se aninha nos recessos de nossos corações.
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