A controvérsia moderna sobre o livre-arbítrio é tão freqüentemente ligada a João Calvino e ao "calvinismo' que muitos assumem que o reformador suíço foi o primeiro a atribuir uma vontade escravizada ao homem caído. O debate sobre o livre-arbítrio é normalmente relacionado àidéia de predestinação de Calvino.
Na realidade há pouca coisa original, se houver alguma, na visão de Calvino sobre a vontade ou sobre a predestinação. Martinho Lutero escreveu mais extensamente do que Calvino sobre ambos os assuntos e a obra de Calvino sobre os temas pode ser considerada nada mais do que uma nota de rodapé da obra de Lutero. Ambos os reformadores contam pesadamente com o pensamento embrionário de Agostinho sobre esses assuntos. Talvez o nome de Calvino figure tão proeminentemente na discussão moderna da vontade porque os seus seguidores nas igrejas reformadas têm feito muito para manter viva a tradição agostiniana.
Calvino, no entanto, discursou sobre a questão do livre-arbítrio e seu lugar na história da teologia exige de nós um resumo do seu ensino sobre a questão. Ele devota alguns capítulos das suas Institutas da Religião Cristã à questão do livre-arbítrio.
Calvino começa o seu tratamento da vontade estabelecendo o curso da sua investigação. Ele procura evitar dois erros. O primeiro é o de ignorar completamente o assunto: "O homem, sendo desprovido de toda retidão,imediatamente aproveita do fato para entregar-se à indolência, e não tendo capacidade em si mesmo para o estudo da retidão, trata todo o assunto como se este não o interessasse".
O segundo erro a ser evitado é a falha em dar a honra adequada a Deus em efetuar a nossa redenção. Errar no nosso entendimento da vontade caída é correr o risco de depreciar a glória de Deus.
Por outro lado, o homem não pode apropriar-se de nada, por mais insignificante que seja, sem roubar a Deus em sua honra e, por confiança imprudente, sujeitar-se à queda. Para nos livrarmos dessas dificuldades, nosso curso adequado será primeiramente mostrar que o homem não tem bem remanescente em si mesmo e é cercado por todos os lados da mais miserável destituição; e, então, ensiná-lo a aspirar a bondade da qual é desprovido e a liberdade da qual tem sido privado... Logo, o quepermanece, agora que o homem foi despido de toda a sua glória, [se não] reconhecer o Deus a cuja bondade ele falhou em ser grato quando foi cumulado com as riquezas da sua graça? Não o tendo glorificado pelo reconhecimento das suas bênçãos, agora, pelo menos, ele deve glorificá-lo confessando a sua pobreza.
As Concepções Paga e Cristã
Calvino analisa brevemente as teorias da vontade sustentadas pelos filósofos pagãos. Eles comumente faziam uma distinção entre as faculdades da mente (lugar da razão), dos sentidos (o elo para as respostas físicas) e da vontade. A mente é a faculdade superior, pela qual a virtude é alcançada. Os sentidos são os poderes inferiores e são usualmente responsáveis por conduzir a mente ao erro e à desilusão.
A vontade ocupa um lugar intermediário entre a razão e o sentido e possui o poder e a liberdade de seguir as boas inclinações da mente ou para render-se aos apetites mais desprezíveis dos sentidos.
Citando Cícero, Calvino diz: "Por isso Cícero diz, na pessoa de Cotta, que como cada um adquire virtude por si mesmo, nenhum sábio jamais agradeceu aos deu ses por ela. 'Somos louvados', diz ele, 'pela virtude e glória na virtude, mas isso não poderia acontecer se a virtude fosse dom de Deus e não de nós mesmos'. Um pouco depois disso, ele acrescenta: 'A opinião de toda a humanidade é que a fortuna deve ser buscada em Deus e a sabedoria em nós mesmos'".
Calvino diz que a filosofia secular, quase universalmente, considera a razão humana como sendo suficiente para a vida virtuosa. Então ele observa as visões sustentadas pelos teólogos e filósofos cristãos que reconhecem que o homem é caído a um grau no qual até mesmo a razão sadia é seriamente prejudicada. Mas ele, então, mantém que a visão de muitos, se não da maioria, dos pensadores cristãos chega muito perto da dos filósofos seculares. Ele considera que a causa principal para isso é a relutância dos teólogos em extraviarem-se da opinião filosófica ensinando "algo que a maioria da humanidade pode considerar absurdo". Assim, eles buscam, "em alguma medida, reconciliar a doutrina da Escritura com os dogmas da filosofia".
A reflexão de Calvino nesse ponto deveria fazer com que parássemos um minuto. Vivemos numa era na qual o pensamento secular e a filosofia humanista são tão dominantes que os cristãos freqüentemente aceitam semcríticas a visão humanista da liberdade humana.
Calvino mostra como isso aconteceu na história da igreja. Ele cita alguns dos pais da igreja primitiva: "Crisóstomo diz, 'Deus, ao colocar o bem e o mal em nosso poder, deu-nos liberdade total de escolha; ele não retém aquele que recusa mas abraça aquele que aceita'... 'Como o todo não é feito pela assistência divina, nós mesmos devemos necessariamente executar [algo]'... 'Realizemos o que é propriamente nosso, Deus suprirá o resto'. Em uníssono a isso, Jerônimo diz, 'É nosso o começar, de Deus o terminar'".5
Calvino vê confusão no assunto da vontade em muitos dos pais antigos: "Pessoas que professam ser discípulos de Cristo têm falado sobre esse assunto de forma muito semelhante aos filósofos. Como se a natureza humana aindaestivesse em sua integridade, o termo livre-arbítrío sempre tem sido usado entre os latinos, enquanto os gregos não se envergonhavam em usar um termo ainda mais presunçoso - isto é, autexousion - como se o homem ainda tivesse poder total em si mesmo".
Calvino resume a visão da vontade que emergiu entre os escolásticos, dando atenção particular à de Peter Lombard:uAs escolas ... [enumeram] três tipos de liberdade: a primeira, uma liberdade da necessidade; a segunda,liberdade do pecado; e a terceira, liberdade da miséria: a primeira é tão naturalmente inerente ao homem que ele não pode ser desprovido dela, enquanto que, por causa do pecado, as outras duas foram perdidas. Eu, de bom grado, admito essa distinção exceto quando ela confundenecessidade com compulsão".1
Calvino concorda com Lombard, com a condição de que a necessidade e a compulsão não devem ser confundidas. Nesse ponto, Calvino ecoa os sentimentos de Lutero em oposição a Erasmo. Aqui, a liberdade simplesmente significa que o homem ainda tem a capacidade de agirvoluntariamente, sem compulsão, o que Calvino prontamente admite. Ele diz: "Isso é perfeitamente verdadeiro: mas por que um assunto tão pequeno tem sido dignificado com um título tão orgulhoso? Uma liberdade admirável! que o homem não é forçado a ser servo do pecado, enquanto é, no entanto, ethelodoulos (escravo voluntário); sua vontade sendo restringida pelas algemas do pecado... Se alguém, então, escolhe usar esse termo sem juntar qualquer significado ruim a ele, não será perturbado por mim por causa disso; mas como ele não pode ser mantido sem um perigo muito grande, penso que a abolição do mesmo seria uma grande vantagem para a igreja. Eu mesmo não desejo usá-lo; e outros, se aceitarem o meu conselho, farão bem em abster-se dele".
Calvino, então, reitera a importância de proteger a glória de Deus. Não devemos nos vangloriar do poder dentro de nós de fazer por nós mesmos o que só Deus pode fazer por nós. Regozijarmo-nos em nosso próprio poder de nos inclinarmos para as coisas de Deus é espelhar e refletir o pecado de Adão e Eva. É sermos seduzidos pela promessa da serpente de que seremos como deuses.
Com a ajuda de Agostinho, Calvino faz um chamado à humildade apropriada. Foi perguntado a um orador, de acordo com Agostinho, "Qual é o primeiro preceito na eloqüência?"
"Elocução", o orador respondeu.
"Qual é o segundo?"
"Elocução."
"Qual [é] o terceiro?"
"Elocução."
"Assim", concluiu Agostinho, "se você me perguntasse com relação aos preceitos da religião cristã, eu responderia, primeiro, segundo e terceiro, 'humildade'."
R. C. Sproul
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