Carta aos Romanos
"A Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual nada se omitiu que não fosse necessário e útil de se conhecer; tampouco nada se ensina senão o que convenha saber". (J. Calvino, As Institutas, III.31.3).
Em 1539, Calvino, o jovem de 30 anos, podia finalmente tornar a fazer o que julgava determinado à sua vida: o estudo, a reflexão e a pregação. Depois de uma rápida e turbulenta passagem por Genebra (1536 - 1538), agora está em Estrasburgo, [Calvino seria persuadido pelos genebrinos, e outros amigos, a voltar a Genebra, o que fez em 13/09/1541, implantando, a partir de então, uma intensa reforma naquela cidade. Ali permaneceria até o fim de sua vida (17/5/1564)]- disposto a recomeçar sua vida pastoral e de estudo, tendo, então, como marco dessa nova fase a redação de seu comentário do livro de Paulo aos Romanos (1539)- [Publicado em março de 1540. Outras edições foram publicadas em 1551 e 1556. É provável que esse trabalho seja o resumo de suas aulas ministradas em Genebra, no período de (1536 - 1538)]. Esse foi seu primeiro comentário de um livro da Bíblia. A partir de Romanos, ele comentará quase todos os livros da Bíblia; e, no púlpito, fará também exposição da maior parte dos livros das Escrituras, tornando-se um dos maiores e mais importantes exegetas de todos os tempos, sendo, não sem razão,
alcunhado de "O Exegeta da Reforma".
Romanos (1.1) - Calvino
"Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser Apóstolo, separado para o evangelho de Deus" (Rm 1.1)
1. Paulo. A questão do nome - Paulo - não é de tanta importância que demande demasiado tempo gasto em discuti-la. Não se pode acrescentar nada à discussão que não haja sido freqüentemente reiterado por outros intérpretes. Eu evitaria fazer qualquer referência a ela, se não fosse o fato de ser possível dizer algo àqueles que porventura apresentem algum interesse sem serem excessivamente tediosos, visto que minhas observações sobre o tema serão breves.
A teoria de que o apóstolo assumira esse nome como lembrança de seu sucesso na conversão do pro-cônsul Sérgio é desmentida pelo próprio Lucas (At 13.7,9), o que deixa claro que Paulo tinha esse nome antes mesmo desse tempo. Não creio, tampouco, ser provável que esse nome fosse dado a Paulo por ocasião de sua própria conversão. Agostinho, creio eu, deu seu endosso a este hipótese simplesmente porque ela lhe propiciara a oportunidade de apresentar algum argumento sutil em sua discussão sobre o Saulo auto-suficiente, o qual se converteu em um mui pequeno (parvulum) [Nota - Expressando assim o significado de Paulus, que em latim é pequeno. "Paulo", diz o notório Elnathan Parr, "significa pequeno, e deveras não impropriamente, porque lemos que ele era de estatura baixa e de ter uma voz bem deficitária, levando muitos a pensar que essa foi a objeção contra ele em 2Co 10.10"]discípulo de Cristo. Orígenes, entretanto, é mais coerente em sua conclusão, dizendo que Paulo era portador de dois nomes. É bem mais provável que haja sucedido que o nome familiar, Saulo, lhe fora dado por seus pais como indicativo de sua religião e raça; enquanto que o sobrenome, Paulo, lhe fora adicionado como evidência de seu direito de cidadania romana [ Nota - A maioria dos escritores concorda com este ponto de vista, considerando Saulo como seu nome hebreu, e Paulo como sendo seu nome romano]. Esta constituía uma grande honra que era de muita importância nos dias de Paulo, a qual seus pais não queriam ocultar, embora não lhe dessem tanto valor que deixassem que a mesma obscurecesse a evidência de sua origem israelita. Entretanto, este foi o nome que Paulo geralmente usou nas Epístolas, talvez porque era um nome bem mais notório e mais comum nas igrejas às quais escrevia, bem como mais aceitável no Império Romano e menos notório no seio de seu próprio povo (judeu). Paulo, naturalmente, procurou evitar as suspeitas desnecessárias e o violento desprazer ocasionado pelos nomes judaicos em Roma e suas províncias, evitando igualmente excitar as paixões de seus compatriotas, bem como tomar precaução em prol de sua segurança pessoal.
Servo de Jesus Cristo - Estas são distinções pelas quais Paulo designa a si próprio com o fim de assegurar autoridade para seu ensino. Ele faz isso de duas formas, a saber: primeiro, ratificando sua vocação para o apostolado;[Nota - "Um apóstolo chamado - vocatus apostolus: Nossa versão traz "chamado para ser apóstolo". A maioria considera 'chamado' aqui no sentido de escolhido ao eleito, "um apóstolo escolhido". O professor Stuart observa que essa palavra nos escritos de Paulo, tem sempre o sentido de vocação eficiente, e significa não só o convocado, mas o eficazmente convocado. Ele cita 1Co 1.1,2; 24; Rm 1.6,7;8.28; comparados a Gl 1.15; Jud 1; Hb 3.1; Rm 11.29; Ef 4.1.
Ele era apóstolo por vocação, ou como traduz Beza, "pela vocação de Deus - ex Dei vocatione apostolus". O significado é o mesmo expresso por ele próprio em Gl 1.1. Turrettin traduz: "Um apóstolo chamado" e "chamado para ser apóstolo" é esta: a primeira expressão comunica a idéia de que ele obedeceu a vocação; e a outra não] e, segundo,anunciando a seus leitores que esta vocação tinha algo a ver com a Igreja de Roma. Tal fato, para Paulo, era de grande importância, não só que seria considerado como apóstolo pelo chamado de Deus, mas também que seria conhecido como aquele que fora destinado à Igreja de Roma. Ele, pois, declara ser servo de Cristo e chamado para o ofício de apóstolo, querendo significar que sua conversão em apóstolo não era uma intrusão casual. Ele, pois, acrescenta imediatamente a seguir que fora separado [ selectum - selecionado - separado, posto a parte; 'segregatus', Vulgata; 'separatus', Beza. "Os fariseus eram intitulados (separatistas). Separavam-se para o estudo da lei; neste sentido podendo ser chamado com a mesma expressão - separado para a lei - no original. Em ilusão a isso, diz Drusius, foi assim que o apóstolo se intitulou em Romanos 1.1 - separado para o evangelho, quando fui chamado dentre os fariseus para ser um pregador do evangelho. "Separado é o termo adotado tanto por Doddridge quanto por Macknight, e bem assim por nossa versão], fortalecendo, assim, sua insistência em dizer que era um dentre muitos, mas que era um apóstolo do Senhor, particularmente eleito. Nesse sentido, ele está também transitando seu argumento do geral para o particular, visto que o apostolado é um gênero particular de ministério. Todos quantos exercem o ofício do magistério são considerados pertencentes ao número de servos de Cristo; os apóstolos, porém, têm uma distinção única que os caracteriza entre todos os demais. Portanto, a separação de Paulo(mencionada mais adiante) expressa tanto o objetivo quanto a ação de seu apostolado, pois sua intenção era fazer uma breve referência ao propósito de sua eleição para este ofício. Servo de Cristo, portanto, que ele aplica a si próprio, é um título que compartilhava como todos os demais mestres. Ao reivindicar o título de apóstolo, contudo, ele atribuiu a si próprio certa prioridade. Visto, porém, que aquele que usurpa o ofício apostólico não pode atribuir a si autoridade alguma, Paulo lembra a seus leitores que ele fora designado por Deus pessoalmente.
Assim, o significado da passagem consiste em que Paulo não era servo de Cristo no sentido ordinário, mas apóstolo, designado pelo chamamento divino, e não por quaisquer pretensiosos esforços oriundos dele próprio. Nesse respeito, vem em seguida uma explanação mais clara de seu ofício apostólico, já que sua comissão era pregar o evangelho. Não concordo com aqueles que se reportam a esta vocação, a qual Paulo ora descreve como sendo a eterna eleição divina, e interpretam a separação no sentido ou de sua separação desde o ventre materno (como mencionado em Gl 1.15), ou de sua escolha (referida por Lucas) para pregar aos gentios. A glória de Paulo consiste simplesmente em ser Deus o autor de sua vocação. Não podia haver qualquer suspeita de que ele estivesse apropriando-se indevidamente desta honra com base em sua pretensão pessoal [Nota - Há quem combine as quatro separações. "Posto à parte no eterno conselho de Deus e desde o ventre de sua mãe (Gl 1.15) e, pelo especial mandamento do Espírito Santo (At 13.2), confirmado pela constituição da Igreja (At 13.3; Gl 2.9)" . [ Mas o objeto aqui parece ter sido aquele declarado por Calvino: não é justo nem prudente conectar qualquer idéia com a palavra, exceto aquela que o contexto requer; pois agir ao contrário só serve pra criar confusão ].
Deve-se notar aqui que nem todos estão qualificados para o ministério da Palavra. Este requer uma vocação especial. Aqueles que acreditam que estão bem qualificados devem revestir-se de especial cuidado para não assumirem o ofício sem a vocação. Discutiremos em outra parte o caráter da vocação de apóstolo e bispos; o ponto, porém, a ser observado é que a função de um apóstolo consista na pregação do evangelho. Este mesmo fato prova o absurdo daqueles cães raivosos cuja mitra, bastão e pretensões similares são únicas marcas distintivas, mas cuja vanglória consiste em dizer que são os sucessores dos apóstolos.
O termo servo nada mais, nada menos, significa ministro, pois ele indica aquilo que é de caráter oficial. [ Nota - Moisés, Josué, Davi, Neemias e outros, foram, num sentido semelhante, chamados servos; e assim também nosso Senhor. Foram oficialmente servos.]. Menciono isso a fim de invalidar a impressão equivocada daqueles que se comprazem em filosofar sobre o termo, com base na pretensão de haver um contraste entre o ministério de Moisés e o de Cristo.
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