Você já se viu no meio de uma disputa entre pessoas que deveriam se amar? Você já se sentiu pressionado a tomar partido por alguém, tendo que posicionar-se contra o outro que também é seu amigo?
Como administrareste tipo de conflito, onde ambos parecem ter razão?
Paulo se viu numa situação semelhante com os cristãos em Roma. De um lado da arena estavam os cristãos judeus, que traziam consigo toda uma bagagem cultural, tradições milenares, e uma boa dose de legalismo. Do outro lado estava os recém-chegados gentios, que abraçaram a fé em Jesus sem o ranço judaizante, porém tranzendo sua própria cosmovisão.
Era como se dois universos paralelos se colidissem. No meio dessa colisão estava Paulo, um judeu convertido a Cristo, que também usufria de cidadania romana. Quanto tato Paulo teve que ter para lidar com a situação! Quanto jogo de cintura! Ele não podia simplesmente tomar partido pelos judeus, ou pelos gentios. Seu trabalho seria promover a reconciliação pelo exercício da diplomacia. Poderia parecer até que estivesse em cima do muro, ou que fosse um homem de fronteiras, mas na verdade, era um reconciliador, um diplomata do reino.
Em vez de tomar partido, Paulo aponta as qualidades e vicissitudes de ambas as partes, convidando-as ao convívio amistoso patrocinado pelo amor.
A discussão ali girava em torno da dieta alimentar e da guarda de um dia santo (sábado), além da circuncisão. Para os crentes judeus, os gentios deveriam submeter-se a esses regulamentos para pertencer à comunidade cristã. Durante os primeiros capítulos da epístola endereçada aos romanos, Paulo deixa claro que para Deus não há diferença entre judeus e gentios. Ambos são carentes da mesma graça (Rm.3:22-29). Foram vários capítulos dedicados a demonstrar a inutilidade da justiça própria, e a caducidade de regras impostas pela lei, como por exemplo, a circuncisão.
Podia parecer que Paulo se colocara em favor dos gentios, e contra seu próprio povo. Mas como “pau que dá em Chico, também dá em Francisco”, chegara a hora de mirar o outro lado.
Referindo-se àqueles que já haviam compreendido a abrangência da graça, e que já não estavam sob o jugo da lei, Paulo diz:
“Ora, quanto ao que é fraco na fé, recebei-o, mas não para condená-lo em questões discutíveis" (Rm.14:1).
É claro que Paulo tinha uma posição firme acerca dessas coisas, porém, tais questões ainda eram “discutíveis” para aqueles que não as tinham compreendido plenamente.
“Um crê que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes. O que come não despreze o que não come, e o que não come não julgue o que come, pois Deus o recebeu por seu"(vv.2-3).
Se da parte dos judeus, havia quem julgasse os gentios que não se submetiam às ordenanças da Lei, da parte dos gentios havia que desprezasse quem o fizesse. Ambos estavam igualmente errados. Ninguém tem o direito de julgar, tampouco de desprezar. O fato de havermos recebido uma compreensão mais acurada acerca da graça de Deus não nos faz melhores ou superiores àqueles que ainda não a receberam.
“Quem és tu, que julgas o servo alheio? Para o seu próprio Senhor ele está em pé ou cai. E estará firme, pois poderoso é Deus para o firmar" (v.4).
O que nos firma os pés não é o nível de conhecimento adquirido, e sim o fato de Deus nos ter recebido como Seus. Ele é que é poderoso para nos firmar. Por isso, não temos o direito de nos estribar em nosso próprio conhecimento. Muito mais do que conhecer a Deus, o que realmente importa é ser conhecido por Ele.
Paulo prossegue em seu argumento:
“Um faz diferença entre dia e dia, mas outro julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente seguro em sua própria mente. Aquele que faz caso do dia, para o Senhor o faz. E quem come, para o Senhor come, pois dá graças a Deus; e o que não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus" (vv.5-6).
Muito mais peso do que a ação em si tem a motivação por trás dela. Vejo pessoas que se abstém de certas coisas que a meu ver não têm qualquer valor. Posso discordar delas, mas não posso julgá-las. Só Deus conhece suas motivações. Não acho, por exemplo, que uma mulher que sirva a Deus necessite abrir mão de cuidar de sua aparência, freqüentando salão de beleza, academia, etc. Também não acredito que seja errado para um homem cuidar de sua aparência, e, principalmente de sua saúde. Mas não tenho direito de me sentir superior à quem prefere abster-se disso. Pois quem assim faz, para o Senhor o faz.
Posso discordar de certas práticas, mas não posso julgar a intenção de quem as adota. Posso até argumentar no afã de fazê-lo compreender um pouco mais dos desígnios de Deus, mas não me atrevo a sentir-me superior, mirando-o de cima pra baixo. Da mesma forma, tal pessoa não tem o direito de julgar-me por não adotar suas práticas.
Afinal, “nenhum de nós vive para si, e nenhum morre para si. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, quer vivamos quer morramos, somos do Senhor (...) De modo que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus" (vv.7-8, 12).
Tal postura, porém, não tem a pretensão de endossar ensinos legalistas que mantém as pessoas sob um jugo insuportável de regras e ordenanças. Em muitos textos Paulo simplesmente detona tais ensinos (Confira Fp.2:8-23). Mas aqui, Paulo não está falando com líderes, e sim com pessoas que precisam aprender a conviver com quem pensa de maneira diferente. Ele está tratando com uma comunidade heterogênea, onde seus membros teriam que aprender a co-existir pacificamente.
Para mantermos os elos que nos unem intactos, temos que aprender a lidar com as diferentes opiniões de maneira sóbria e modesta, sem jamais impor nossos pontos de vista. Veja o que ele diz mais sobre isso:
“Portanto, não nos julguemos mais uns aos outros. Antes seja o vosso propósito não pôr tropeço ou escândalo ao irmão. Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de si mesmo imunda. Mas se alguém a tem por imunda, então para esse é imunda"(vv.13-14).
Não é fácil lidar com subjetividade. Minhas certezas não devem servir de tropeço ou escândalo pra ninguém. Então, às vezes, é melhor abrir mão do direito de opinar, até que as pessoas tenham alcançado maturidade para entender o que agora não compreendem.
A liberdade que a graça me confere deve ser delimitada pelo amor que tenho a meus irmãos. Devo viver uma espiritualidade ex-cêntrica, isso é, em que o centro gravitacional não seja meu “eu”. Devo aprender a viver em função daqueles por quem Cristo morreu.
Se por causa da comida se contrista teu irmão, já não andas conforme o amor. Não faças perecer por causa da tua comida aquele por quem Cristo morreu (…) Não destruas por causa da comida a obra de Deus" (v.15,20a).
Este princípio tem múltiplos aplicativos. Por exemplo: gosto de ir à praia com minha família. Não vejo qualquer mal nisso. Porém, se estou em meio a irmãos que se escandalizariam com isso, prefiro abster-me de algo que aprecio, só para não ser tropeço para os mais fracos de consciência. Não se trata de hipocrisia, mas de amor.
É claro que há assuntos que são centrais, e que não devem ser alvo de qualquer transigência. Porém, há outros que são, no dizer de Paulo, discutíveis. Deixemos, portanto, que o amor nos restrinja a liberdade, haja vista que o bem comum é mais importante do que o nosso bem-estar particular.
Se todos pensassem e agissem assim, de quantas divisões o Corpo de Cristo seria poupado? Quantas igrejas se dividiram por causa de assuntos periféricos? A quantidade de água ideal para o batismo, se o jejum deve ser total ou parcial, se o pão da Ceia deve ser ázimo ou não, se as mulheres podem ou não exercer cargos eclesiásticos, etc. E assim, destruímos a obra de Deus por causa de preferências pessoais.
É mais fácil renunciar a um vício do que renunciar ao direito de ter razão. Ninguém quer dar o braço a torcer! Porém, no reino de Deus, quem vence não é quem tem razão, mas quem tem amor, não é quem dá a última palavra, mas quem se silencia para não causar escândalo.
Paulo prossegue:
"Mas nós, que somos fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos, e não agradar a nós mesmos. Portanto, cada um de nós agrade ao seu próximo no que é bom para edificação. Pois também Cristo não agradou a si mesmo" (Rm. 15:1-3a).
Muitas das discussões e desavenças na igreja não se dão por amor à verdade, mas por amor próprio. Todos querem provar que estavam certos, e em contrapartida, o outro lado estava errado. Só o amor nos faz enxergar o outro dentro de sua própria ótica, levando em consideração seu background, seu histórico, e as circunstâncias em que vive. É relativamente fácil julgar a árvore pelos frutos, mas quem se dá ao trabalho de avaliar primeiro suas raízes? Em que terreno ela foi plantada? Como foi cultivada?
Só poderemos abrir mão de termos sempre a razão quando formos batizados no amor. E será este amor que nos concederá uma boa dose de paciência para que suportemos a fraqueza uns dos outros. Paulo arremata:
“Ora, o Deus de paciência e consolação vos conceda o mesmo sentimento uns para com os outros, segundo Cristo Jesus, para que, concordes e a uma voz, glorifiqueis ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, recebei-vos uns aos outros, como também Cristo vos recebeu para a glória de Deus" (vv.5-7).
- Hermes C. Fernandes
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