Por: Derval Dasilio
Há urgências. Porém, a sociedade não é receptiva. Pessoas famintas, desnutridas, doentes, discriminadas por causa da cor da pele, portadoras de deficiências, sem autonomia física, ficam ainda mais fragilizadas. Quem cuidará delas? A religião as condenaria ao conformismo, como resultado de pecados pessoais ou ancestrais, de acordo com o senso comum. Jesus mandou: “Entra na roda, fique no meio!”. E o esquadrão que vigiava, perguntou: “Será que ele ousará contrariar a religião?”. Na sinagoga/igreja, lugar dos religiosos, o fato chama a atenção. E Jesus, entendendo o espírito coletivo repressivo, legalista ou fatalista, pergunta: “O que a Lei permite fazer no sábado: fazer o bem ou o mal? Salvar uma vida ou dar-lhe fim?”. Fica-se em cima do muro. O medo de “agir ilegalmente”, contra ideologias tradicionais, é mais forte.
A religião não cuida dessas coisas? Jesus não espera -- cura o homem deficiente, alimenta famintos, “porque hoje é sábado”, como diria Vinícius de Moraes. E inclui diferentes, estranhos. Aqui e agora, a vida não pode esperar pela morte. A neutralidade e a equidistância, porém, escondem o julgamento de morte. Estabelecer condições de relacionamento para ações que instrumentalizem teológica e eticamente estas questões como próximas da vida de fé, é urgente. Mas Jesus, enquanto vigiado pelas autoridades religiosas de seu tempo, era julgado.
Heróis nas lutas por libertação no século 20, como Mahatma Ghandi, Martin Luther King, Nelson Mandela, jamais teriam chance de fazer o que fizeram, se dependessem da aprovação oficial da igreja cristã, para não falar da fé fundamentalista. Ghandi leu o Novo Testamento numa noite, quando morava na África do Sul. Ao amanhecer, convicto de que encontrara orientação certa para sua causa, procurou uma igreja cristã. Deparou-se com uma e quis entrar. Imediatamente viu uma placa: “É proibida a entrada de cães e negros”. Nunca mais entrou numa igreja cristã. Não há notícia sobre qualquer apoio evangélico ou cristão à sua causa. Entre cristãos, o legalismo sempre está próximo do preconceito e do exclusivismo. A fome e o racismo não são estudados na Escola Dominical. A afirmação do pecado abstrato, sim.
O Brasil quer torrar milhões e milhões para sediar a Copa do Mundo em 2014, e aqui há milhões de pessoas morrendo de fome. O governo desistiu do Fome Zero, pouco depois da vitória nas urnas. Será a fome uma crise humanitária, social e econômica, resultante da hipocrisia política, de campanhas eleitorais governamentais, insensibilidade das elites, da religião, do conformismo da sociedade? Se não é, então, o que é? O homem tolhido pela doença socializada -- e a fome é a pior delas -- ou pelo racismo, necessita de amparo. Precisa ser útil, trabalhar, produzir o seu sustento e o dos dependentes. Especialmente do ponto de vista coletivo, curar a desnutrição e evitar o holocausto infantil causado por doenças. Transformações, são importantes para a manutenção da vida.
A desnutrição mata mais que a Aids, acidentes aéreos e terrestres, guerras e terrorismo, juntos. Seriam como mil transatlânticos afundando, cheios de crianças que vão morrer; e ninguém chora, ninguém protesta, ninguém lamenta. Talvez porque a Aids, a guerra e o terrorismo não fazem distinção de classe como a fome faz. Desnutrição em massa, epidemias e aumento na mortalidade são “privilégios”dos fracos, excluídos da participação dos bens sociais.
Programas como o Bolsa Família são esmolas, enquanto o que as famílias necessitam é trabalho, habitação e seguridade sanitária, em primeiro lugar. A fome não espera pela religião, diz o Evangelho. Mais de um bilhão de homens, mulheres e crianças, neste planeta -- mais de vinte milhões no Brasil -- sofrem por causa da fome. “A esmola mata de vergonha ou vicia o cidadão”, diz Luiz Gonzaga. E Jesus diz, a respeito do “descanso” que deram a Deus: “Meu Pai ainda trabalha” para saciar as fomes do mundo.
“No juízo final, você espera ser desculpado? Deus poderá lhe obrigar a derramar lágrimas de vergonha, nesse dia, fazendo recitar de cor os poemas que você poderia ter escrito, e não o fez; as palavras de indignação que evitou proferir, tivesse sido sua uma vida de amor à justiça” (W.H. Auden).
• Derval Dasilio é pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil.
Fonte: [ Ultimato ]
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