Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.
Isaías 45.7
Isaías 45.7
Moro no estado do Rio de Janeiro e, com tristeza, vemos mais uma vez, no início deste ano – como aconteceu no passado em outras regiões do estado – a morte de centenas de pessoas em função das chuvas, comuns nessa época do ano. As causas da tragédia, no entanto, não podem ser circunscritas à precipitação das águas. A ausência do Poder Público, a obstinação de alguns moradores, a pobreza, a corrupção, etc, podem ser discutidas, analisadas e investigadas na esperança – às vezes muito fraca, mas sempre insistente – de que tudo isso não se repita futuramente. E cristãos devem participar ativamente de todo esse processo.
Mas minha intenção hoje é levantar a questão das modificações teológicas que tendem a acontecer formalmente – no meio acadêmico e pastoral, e informalmente – entre os crentes, membros das igrejas. O ponto em questão é a forma como o contato com o sofrimento, pode produzir em nós uma hermenêutica idólatra e desembocar, necessariamente, numa Teologia de Sofrimento, não fundamentada na Revelação, nas Escrituras, mas na contundência da experiência humana. As teologias relacionais são um exemplo disso, como o Teísmo Aberto; mas não quero olhar para essas teologias em si, e sim para seu ponto de partida.
Uma hermenêutica idólatra é aquela que nos projeta sobre o texto bíblico. Seu resultado principal é uma deformação do caráter de Deus e do Evangelho. Tendem a surgir como consequência de uma experiência dramática somada a uma re-leitura da Escritura, agora orientada pela tal experiência. Mas, em um nível não acadêmico, são formuladas nos bancos das igrejas quando crentes que não recebem boa instrução bíblica constroem, em seus enfrentamentos diários, conceitos e imagens de Deus, do Evangelho e do mundo, que se afastam da doutrina e do ensino que a igreja tem, tradicionalmente, mantido – principalmente em sua vertente reformada. Essa hermenêutica é idólatra porque afirma nossa superioridade sobre a Revelação, de modo que deixamos de ter boa vontade com o texto bíblico e o sujeitamos a uma interpretação que assegure, não somente aceitação racional, mas também conforto emocional – ainda que este último se baseie numa falsa segurança.
O texto que encabeça este post nos dá boa oportunidade de investigar essa questão. Seu contexto, no livro do profeta Isaías, é o de uma advertência severa contra a idolatria. A idolatria não começa quando alguém forja uma imagem de escultura e se curva diante dela. Essa é, tão somente, sua expressão gráfica, estética, ritualística. A idolatria tem início no exato momento em que voltamos nossos olhos de Deus para nós mesmos. E, acredite, nosso primeiro ídolo é sempre aquele cuja imagem vemos no espelho. Toda expressão de idolatria, seja ela religiosa, filosófica ou social, tem como base nossa auto-adoração. Daí, o processo continua num ciclo de auto-engano e, frequentemente se projeta para fora de nós. Uma leitura de Isaías 44.12-20 nos assegura desse fato. Fomos criados para adorar a Deus; nosso coração tem essa constituição. O pecado quebra essa orientação original e, não encontrando o Criador, nosso coração se volta, necessariamente, para alguma parte da Criação – começando por nós mesmos. Isso deturpa toda a nossa apreensão da realidade e nos cega para o fato de que não podemos confiar em nossas capacidades quando se trata de determinar verdade e mentira (Is 44.20). E o problema não é que não saibamos algo da verdade, mas que somos, por natureza – depois da Queda – deturpadores da verdade (Rm 1.18-23 e 25).
Isso tudo, por si só, já é um problema enorme, além de ser essa a condição em que todos nascemos. Mas quando essa característica do ser humano decaído parece ressurgir no pecador redimido estamos, realmente, numa situação ruim. Assim, quando teólogos e formadores de opinião no meio evangélico, em virtude de catástrofes e do sofrimento humano começam a pensar a Bíblia a partir do impacto que tais eventos têm sobre eles, ficamos à mercê da subjetividade, das circunstâncias e da possibilidade de, mais adiante, mudarmos outra vez nossas convicções quando novos eventos ocorrerem. O dano não é menor quando tal processo de dá nos bancos das igrejas, com cristãos dizendo como Deus deve ser e agir – ao invés de aceitarem o testemunho que Deus dá se si mesmo. O pior estrago é que roubamos a glória do Criador: terminamos com um Deus impotente, uma Escritura não confiável e um Evangelho que não salva! Anulamos a graça e nos tornamos inúteis (Rm 1.21)!
É uma necessidade urgente que rejeitemos a tentação de fazer teologia a partir do sofrimento humano e retornemos às Escrituras como ponto de partida para o pensar e viver cristãos. E urge que ensinemos os membros de nossa igreja a lerem a Palavra tendo Cristo como referencial maior.
Compreendo que é sempre muito difícil tratar de qualquer questão quando sentimentos estão envolvidos. Lembro-me quando uma senhora, durante o estudo da Escola Dominical, perguntou-me se seu pai havia sido salvo. Ele nunca dera crédito ao Evangelho e havia falecido após um tempo de internação hospitalar no qual perdera a capacidade de interagir – embora parecesse entender o que se lhe dizia. Ela lhe falou outra vez do Evangelho mas não podia obter dele nenhuma resposta. “Pastor, meu pai foi para o céu ou para o inferno?”
Quando milhares de pessoas morrem por causa de um tsunami, ou centenas por causa da chuva, as questões sobre o caráter de Deus, sua justiça, bondade e onipotência logo vêm à mente. A tentação de se buscar respostas que nos satisfaçam e nos confortem o mais rapidamente possível é muito grande. Assim como produzir uma apresentação do Evangelho que seja mais palatável a homens e mulheres que estão em meio ao sofrimento e/ou confusos por causa dele. Mas essa é uma segurança falsa. É fruto da idolatria e não da fé. Não pode nem consolar nem fortalecer os necessitados.
Quando leio Isaías 45.7 fico confortado! Não são as circunstâncias que controlam minha vida. Não são os pecadores – por mais poderosos que sejam – que determinam meu destino. Não é o diabo que fez ou deixou de fazer isso ou aquilo. É o meu Deus, meu Criador e Salvador que está no controle de tudo. João Calvino diz, nas Institutas, que quando a terra produz boa colheita, creditamos a Deus e o louvamos por isso; quando, porém, vem a seca e a produção falha, creditamos o destino ou forças naturais. Mas quem tem o controle de todas as coisas, sejam boas ou más? É muito bom saber que Aquele que é justo e bom, santo e gracioso, é quem domina sobre tudo e sobre minha vida. Não preciso mudar a doutrina para tentar ter uns poucos grãos de tranquilidade. Eu já tenho tudo de que preciso na Revelação que ele deu de si mesmo e do mundo, nas Escrituras. É essa a fonte básica e determinante de todo o pensar teológico – e à qual sujeitamos, alegremente, toda experiência, intuição e imaginação!
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