Primeiro vem a questão da epistemologia. Como nós sabemos o que é verdadeiro! Aqueles que rejeitam o que a Bíblia ensina sobre a natureza de Deus porque esse ensino entra em conflito com suas idéias de "razão" têm um problema com o racionalismo - a convicção de que nós não podemos ser forçados a nos submeter a uma doutrina que não faz muito sentido para nós. Esse racionalismo tem uma perspectiva muito elevada dos poderes da razão humana quando trata de revelações dadas pela mente do próprio Deus. Observe que o problema não é com a razão propriamente dita, mas com a razão carnal como um ídolo.
Através de toda a Escritura nós encontramos um claro contraste entre a filosofia do homem natural e a mente de Cristo. Quando essas passagens são trazidas à tona para confrontar as várias doutrinas dos racionalistas, a resposta geralmente é um balançar de ombros. Embora isso não seja suficiente, é razoável. A Palavra de Deus pode cortar a árvore da razão humana ao nível do chão, e apesar disso nós ainda vemos os racionalistas descansando à sua sombra.
O apóstolo Paulo não tem em alta conta a imoralidade humana, nem a vaidade intelectual que ela invariavelmente produz.
Isto, portanto, digo e no Senhor testifico que não mais andeis como também andam os gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração, os quais, tendo-se tornado insensíveis, se entregaram à dissolução para, com avidez, cometerem toda sorte de impureza. Mas não foi assim que aprendestes a Cristo, se é que, de fato, o tendes ouvido e nele fostes instruídos, segundo é a verdade em Jesus, no sentido de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito de vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade (Ef 4.17-24).
Paulo é muito claro sobre isso. Nós não chegamos a Cristo por meio de nossa razão, mas colocando de lado nossa pseudo-razão e subjugando-a. Por essa razão, a epistemologia que é fundamental para o teísmo da vontade livre representa uma séria ameaça ao evangelho. Deus nos deu o dom da razão para nos capacitar a receber, entender e obedecer a sua verdade. Ele não nos deu a razão para julgar sua verdade. A razão pode legitimamente tentar entender a verdade para obedecer a ela. A razão não pode deliberar sobre se obedecer faz sentido ou não. Quando um homem compra um computador, ele também recebe um manual de operações. Esse manual destina-se a capacitá-lo a entender como operar o computador - ele não tem o objetivo de ensinar como o computador opera. Quando lemos a Bíblia, nossa razão deve tentar entender como Deus quer que nós operemos. O que nós devemos crer? O que nós devemos fazer? A Bíblia não nos foi dada para que nós possamos entender a mecânica de como Deus opera. Por essa razão, a vontade de obedecer deve preceder o entendimento -credo ut intelligam. "Eu creio para que eu possa entender". Como Esdras, nós devemos preparar nosso coração para buscar a lei de Deus, para entendê-la e obedecer a ela (Ed 7.10). Os racionalistas consistentemente afirmam que a verdade não precisa ser aceita se ela não faz sentido à "razão", mas isso não justifica aqueles que estão perecendo. O evangelho não faz sentido para eles.
Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus (ICo 1.18).
Os não-regenerados precisam do evangelho, mas exatamente aquilo que lhes dá a única esperança de salvação é um nonsense para eles. O evangelho está coberto para aqueles que estão perecendo (2Co 4.3). A réplica pode ser que o evangelho não faz sentido para eles, porque seus processos de pensamento estão distorcidos pelo pecado, e eles são teimosos. Isso está correto -esse é o problema. Mas isso nos mostra que os processos de pensamento humano, turvados pelo pecado, não podem ser a corte na qual nós determinamos o que é verdadeiro e o que é falso. Se nossa razão for renovada pelo Espírito Santo, ele nos possibilita ver, na Escritura, com os olhos da razão, o que Deus nos revelou. Antes dessa obra, a Bíblia continua sendo uma linguagem espiritual desarticulada, porque o homem natural não entende as coisas do Espírito, pois elas se discernem espiritualmente (ICo 2.14). Essa cegueira não justifica os incrédulos. O evangelho não faz sentido para eles. Nós podemos, portanto, concluir que a corte da razão humana autônoma é uma corte sem condições de tratar de realidades espirituais. A sabedoria do homem é a loucura de Deus (ICo 1.18-25).
Os adeptos do teísmo relacionai desejam a verdade bíblica? Eles desejam se submeter ao claro ensino da Escritura na questão da onisciência e do evangelho? Se eles não desejam (em nome da razão), então eles precisam tomar cuidado pelo menos para que não percam a própria coisa que colocaram no lugar do claro ensino da Bíblia. A razão autônoma, como Dagom, necessariamente vai cair. Nós sempre perdemos aquilo que cultuamos no lugar de Deus.
Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado. E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós. A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus. Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (ICo 2.2-8).
Nessa passagem, Paulo está falando do evangelho - Cristo crucificado. Depois de se referir à cruz, ele rapidamente contrasta sua mensagem com a sabedoria humana. A sabedoria humana, por si mesma, não aceita a loucura da cruz. Em contraste com a sabedoria humana, Paulo fala da sabedoria de Deus, que é a cruz de Cristo. A sabedoria da cruz foi preordenada, diz ele, antes das eras. Se os governantes desse mundo tivessem conhecido a sabedoria preordenada de Deus na cruz, eles não a teriam cumprido, crucificando Cristo. Mas eles não a conheceram, e foram instrumentos de Deus para garantir nossa salvação. O ensino claro desse texto não é somente que a cruz salva pecadores, mas que a cruz foi preordenada antes dos tempos, e essa afirmação causa problemas para a sabedoria humana. Paulo se gloria no fato de que assim é. A cruz salva alguns pecadores e confunde outros. A "razão" que os dois grupos de pecadores têm em comum não é competente para julgar essas coisas. Todos os nossos pensamentos devem se submeter a Cristo (2Co 10.4,5); nós devemos amar a Deus com toda a nossa mente (Mt 2237); e nunca devemos presumir que Deus precise de nosso conselho (Rm 11.34,35). Quando o apóstolo pergunta: "Quem foi o seu conselheiro?", ele não espera que alguém no fundo da sala levante sua mão.
Logicamente, nós devemos entender o que Deus está nos falando antes que possamos obedecer. Foi por isso que ele nos deu a razão. Mas nós não temos qualquer obrigação de conciliar várias verdades filosoficamente em nossa mente antes de podermos aceitá-las. A razão pode receber a informação, procurando entender o que Deus disse. Ela não tem autoridade para contrastar a verdade recebida com outra verdade revelada e determinar como costurar uma com a outra de forma que façam sentido bom e plausível para o homem natural.
Nós também podemos reconhecer que Deus não se contradiz. A verdadeira razão é uma parte de seu caráter, assim como a santidade ou a bondade. Mas ele é quem pode dizer se contradiz a si mesmo ou não - nós certamente não o podemos. Nós sabemos que Deus é santo, porque ele se revelou como tal. O fato do mal no mundo que ele governa é um problema para nós, mas ele é o juiz, e não nós. Nós sabemos que Deus é bom, porque ele assim se revela na Escritura. Crianças de três anos de idade são assassinadas neste mundo, mas ele é o juiz que determina se isso está ou não de acordo com sua bondade, e não nós. E nós sabemos que Deus conhece todas as coisas, inclusive o futuro, porque ele nos disse isso. Isso causa alguns quebra-cabeças filosóficos bastante interessantes sobre a natureza da eternidade e do tempo, mas ele é quem julga se isso é contraditório ou não. Ele nos disse em sua Palavra que essas coisas são assim e ele não as resolveu, e isso deve ser suficiente para nós. Nós podemos ficar confusos com tudo isso, mas Deus é o fundamento de toda razão e ordem, e o problema não o deixa perplexo. Mas um homem tentar determinar o que o Deus eterno pode ou não pode fazer na história enquanto habita na eternidade é como um besouro tentando fazer física quântica. Se Deus descesse para nos explicar, como Jó queria que ele fizesse, eu posso imaginar qualquer um de nós tentando seguir o raciocínio. Que pensamento engraçado! Depois das duas premissas, nosso cérebro explodiria.
Alguns podem querer responder que essa humildade proposta realmente nos isenta de qualquer responsabilidade de fazer sentido. Realmente, sempre que falamos, a Escritura exige que nós façamos sentido. Aqueles que aceitam os limites colocados pela Escritura sobre a razão humana sabem que isso não é motivo para falar sem sentido, mas uma admoestação para que nós aprendamos quando devemos nos calar - de forma que nós possamos evitar falar coisas sem sentido. "Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim, não o posso atingir" (SI 139.6). Aqueles que não admitem que o conhecimento que Deus tem de nossas ações é "maravilhoso demais" começaram a falar nonsense em nome de evitar falar nonsense, Quando se aproxima do quadro negro para resolver um grande problema, um orgulhoso besouro não pode sequer segurar o giz.
Aqueles que insistem em compreender o incompreensível perderam completamente a mensagem central de Eclesiastes:
Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim (Ec 3.11).
Nós temos uma ânsia pelo conhecimento, porque Deus colocou a eternidade em nosso coração. Mas, quando ultrapassamos nossos limites, quando nos intrometemos nessas coisas, descobrimos que não podemos decifrá-las. Nossa vida é vivida debaixo do sol, e nós devemos reconhecer os limites de nosso raciocínio. O sábio e grande Salomão sabia que os caminhos de Deus são inescrutáveis, e esse conhecimento pode influenciar tudo o que fazemos.
Essa admoestação concernente aos votos diante de Deus pode ser aplicada também ao nosso raciocínio teológico - os princípios envolvidos são os mesmos.
Guarda o teu pé quando entrares na casa de Deus; chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal. Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante de Deus, porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras (Ec 5.1,2).
Se desconsiderarmos essa admoestação, podemos confundir nosso caminho em uma pretensa sabedoria. Nós pensamos que podemos entender como um Deus eterno interage conosco, vivendo como nós em um mundo cheio de mudanças, mas nós não podemos entender isso. Em nossa vida, "tudo depende do tempo e do acaso" (Ec 9.11). Mas Deus é soberano sobre o tempo, e soberano sobre o acaso. Ele é sempre e eternamente o Senhor.
Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante dele (Ec 3.14).
Douglas Wilson
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