- Deus nas mãos de pecadores irados -
Essa é precisamente a forma pela qual os teístas relacionais - e até mesmo alguns que rejeitam o teísmo relacional - têm compreendido mal a doutrina da impassibilidade divina. Um artigo recente emChristianity Today afirmou que a doutrina da impassibilidade é realmente uma relíquia fora de moda da filosofia grega que mina o amor de Deus.
Se amor implica vulnerabilidade, a compreensão tradicional de Deus como impassível torna impossível dizer que "Deus é amor". Um Deus Todo-Poderoso que não pode sofrer está miseravelmente prostrado, porque não pode amar nem se envolver. Se Deus permanece imóvel diante do que quer que nós façamos, há realmente muito pouca importância em se fazer uma coisa ou outra. Se amizade significa permitir-se ser afetado pelo outro, então essa Divindade imóvel e sem sentimentos não pode ter amigos nem ser nossa amiga.
O teísta relacional Richard Rice também exagera a doutrina da impassibilidade. De acordo com ele, esta é a doutrina de Deus que tem dominado a história da Igreja:
Deus mora em perfeita bem-aventurança fora da esfera do tempo e do espaço... Ele permanece essencialmente não-afetado por eventos e experiências das criaturas. Ele não é tocado pelo desapontamento, pesar ou sofrimento de suas criaturas. Assim como sua soberania não encontra oposição, sua serena tranqüilidade não conhece interrupções.
Em outro lugar, Rice alega que os teístas clássicos comumente consideram a terminologia bíblica sobre as afeições divinas como "vôos poéticos essencialmente não-relacionados às qualidades centrais que o Antigo Testamento atribui a Deus". Em vez disso, de acordo com Rice, o Deus do teísmo clássico "é feito de estofo duro. Ele é poderoso, autoritário e inflexível, por isso os doces sentimentos dos quais nós lemos nos profetas são meramente exemplos de licença poética". Para Rice, o Deus da principal corrente histórica do Cristianismo é distante, reservado, descuidado, sem sentimentos e totalmente indiferente aos apuros de suas criaturas.
Por outro lado, Rice retrata o deus do teísmo relacional como um deus de fervente paixão, cuja "vida interior" é movida por "uma ampla faixa de sentimentos, incluindo alegria, dor, ira e arrependimento". De acordo com Riçe, Deus também experimenta desejos frustrados, sofrimento, agonia e angústia severa. Além disso, todas essas agressões são infligidas a ele por suas próprias criaturas.
Clark Pinnock concorda: "Deus não é calmo nem retraído, mas profundamente envolvido e pode se ferir". Pinnock crê que a essência do amor e da ternura divina são vistos no fato de Deus "tornar-se vulnerável dentro de um relacionamento conosco".
E assim os teístas relacionais querem apresentar uma dicotomia ao público cristão. As duas claras e únicas opções, de acordo com eles, são o deus tempestuosamente apaixonado do teísmo relacionai (que está sujeito a feridas que podem ser infligidas por suas criaturas) e o deus totalmente indiferente que eles relacionam ao teísmo clássico (que, no fim, se parece com um iceberg metafísico).
Considere cuidadosamente o que os teístas relacionais estão dizendo: seu deus pode ser ferido; suas próprias criaturas podem afligi-lo com angústia e mágoa; ele é regularmente frustrado quando seus planos são contrariados; e ele fica amargamente desapontado quando sua vontade não é cumprida - o que acontece regularmente. Os teístas relacionais colocaram Deus nas mãos de pecadores irados, porque somente esse tipo de deus, eles alegam, é capaz de amor verdadeiro, doçura genuína ou afeições significativas de qualquer espécie.
De fato, já que o Deus do teísmo clássico não pode ser ferido por suas criaturas, os teístas relacionais insistem em que ele não pode ser"relacional". Ele é muito isolado, desprovido de sentimentos, apático e privado de toda sensibilidde. De acordo com o teísmo relacional, essas são ramificações inescapáveís da doutrina da impassibilidade divina.
Essa é, francamente, a investida favorita do teísmo relacional sobre o teísmo clássico. Ela tem grande apelo no que se refere aos típicoscristãos de banco de igreja, pois nenhum verdadeiro crente jamais admitiria que Deus é insensível e descuidado.
A triste verdade é que, nesses dias, a doutrina da impassibilidade divina tem sido geralmente negligenciada e menosprezada até mesmo por aqueles que ainda afirmam o teísmo clássico. Muitos daqueles que rejeitam as outras inovações do teísmo relacionai são vacilantes com relação à impassibilidade. Eles têm sido facilmente influenciados pelas caricaturas, ou têm sido muito lentos em refutá-las.
Nós devemos começar reconhecendo que todos nós estamos muito inclinados a pensar em Deus em termos humanos. "Pensavas que eu era teu igual", diz o Salmo 50.21. "Mas eu te argüirei e porei tudo à tua vista". "Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR, porque assim como os céus são mais altos que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos que os vossos pensamentos" (Is 55.8,9).Repetidamente a Escritura nos lembra que as afeições de Deus são inescrutáveis (cf. Ef 3.19; Rm 11.33).
Para citar somente um exemplo, considere que o amor de Deus nunca oscila nem declina. Só isso já o torna diferente de qualquer amor que nós tenhamos experimentado. Se nós observarmos como a Bíblia define o amor, em vez de observarmos como nós experimentamos as paixões associadas a ele, nós veremos que tanto o amor divino quanto o amor humano possuem as mesmas características, que são explicadas nos mínimos detalhes em 1 Corintíos 13. Mas observe que nenhuma característica na definição bíblica de amor tem alguma coisa a ver com paixão. O amor real, nós descobrimos, em nada é semelhante à emoção à qual a maioria das pessoas se refere quando menciona "amor".
É por isso que nós devemos deixar a Escritura, e não a experiência humana, formar nossa compreensão das afeições de Deus. Aqueles que estudam a questão biblicamente logo descobrirão que a Palavra de Deus, não meramente o teísmo clássico, coloca as afeições divinas em um plano infinitamente mais alto que as paixões humanas. Nós podemos aprender muito com as expressões antropopáticas, mas as afeições divinas continuam escondidas em alto grau em um mistério incompreensível, impenetrável, muito acima do nosso entendimento.
Nós não podemos compreender completamente o que a Escritura quer dizer, por exemplo, quando ela nos fala que o Deus eternamente imutável ficou tão irado contra Israel no Sinai que ameaçou aniquilar toda a nação e essencialmente anular a aliança feita com Abraão:
Disse mais o SENHOR a Moisés: Tenho visto este povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação. Porém Moisés suplicou ao SENHOR, seu Deus, e disse: Porque se acende, SENHOR, a tua ira contra o teu povo, que tiraste da terra do Egito com grande fortaleza e poderosa mão? (Êx 32.9-11)
Duas coisas são perfeitamente claras nesse registro: primeiro, nós não devemos ler essa passagem e imaginar que Deus esteja literalmente sujeito a ter acessos de raiva. Sua ira contra o pecado certamente é mais do que um mau humor. Nós sabemos que essa passagem não deve ser interpretada com literalidade grosseira.
Como nós podemos estar certos disso? Bem, a Escritura claramente afirma que não há variações reais em Deus (cf. Tg 1.17). Ele não pode real e literalmente ter oscilado entre cumprir e não cumprir a aliança feita com Abraão (Dt 4.31). Aintercessão de Moisés nesse incidente (Êx 32.12-14) não pode literalmente ter provocado uma mudança de opinião em Deus (Nm 23.19). Em outras palavras, uma interpretação estritamente literal do antropopatismo nessa passagem é uma impossibilidade, pois isso impugnaria ou o caráter de Deus ou a credibilidade de sua Palavra.
Contudo, uma segunda verdade emerge de forma igualmente clara desse vivido registro da justa ira de Deus. A passagem destrói a noção de que Deus é distante e não se envolve com seu povo. Muito embora essas descrições da ira de Deus não devam ser compreendidas literalmente, elas também não devem ser descartadas como não tendo significado.
Em outras palavras, nós podemos começar a entender o sentido da doutrina da impassibilidade somente depois que nós admitirmos a total impossibilidade de conhecermos a mente de Deus.
O próximo passo é reconhecer o uso bíblico de antropopatismo. Já que nossos pensamentos não são como os pensamentos de Deus, seus pensamentos devem ser descritos para nós em termos humanos que nós possamos entender. Muitas verdades vitais sobre Deus não podem ser expressas, exceto por meio de figuras de linguagem que se acomodam às limitações da língua e da compreensão humana.
Os antropopatismos devem ser garimpados para que seu significado seja extraído. Enquanto é verdade que eles são figuras de linguagem, nós devemos reconhecer que essas expressões significam alguma coisa que nós devemos compreender. Especificamente, eles nos garantem que Deus não é alheio ou indiferente à sua criação.
Contudo, como nós os reconhecemos como metafóricos, nós devemos também confessar que há algo que eles não significam. Eles não significam que Deus esteja realmente sujeito a mudanças de humor ou à melancolia, espasmos de paixão ou acessos de fúria. Para deixar isso bem claro, a Escritura geralmente enfatiza a constância do amor de Deus, a infinidade de suas misericórdias, a certeza do cumprimento de suas promessas, a imutabilidade de sua mente e a ausência de qualquer flutuação em suas perfeições. "Em Deus não há variação nem sombra de mudança" (Tg 1.17). Essa imutabilidade absoluta é uma das características transcendentes de Deus, e nós devemos resistir à tendência de alinhá-la ao nosso entendimento humano finito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário