Causa da felicidade dos anjos bons e da miséria dos
Maus
Assim, a verdadeira causa da felicidade dos anjos bons reside em estarem unidos ao que é soberanamente. Por outro lado, quando se pergunta pela causa da miséria dos anjos maus, verifica-se que se deve ao haverem-se afastado do ser supremo e vol tado para si mesmos, que não são em grau supremo. Que outro nome recebe semelhante vício senão o de soberba? Pois o princí pio de todo pecado é a soberba. Não quiseram lhes protegesse Deus a fortaleza. A união deles com Deus, que é em grau supre mo, ter-lhes-ia acrescido o ser, mas preferiram menos ser, antepondo-se a Ele. Tal o primeiro defeito, a primeira indigência e o primeiro vício de sua natureza, criada de tal modo, que, não sen do em sumo grau, pudera, entretanto, para ser feliz, gozar de quem é em grau sumo. Apartando-se dele não seria reduzida ao nada, mas, pelo contrário, se faria menos e, em conseqüência, miserável. Se se busca a causa eficiente de semelhante má vonta de, não se encontra. Porque, com efeito, que produz a má vonta de, sendo ela mesma a autora da obra má? A má vontade é, por conseguinte, a causa eficiente de toda obra má, porém, nada é a causa eficiente da má vontade. Porque, se é algum ser, tem von tade ou não tem. Se tem, é boa ou má. Se boa, quem desatinará ao extremo de dizer que a boa vontade é causa da má vontade? Não é possível imaginar absurdo maior. E, se tem vontade má o ser que é julgado o autor da má vontade, é lógico perguntar qual é a causa.
Mas, para que na busca se proceda com método, perguntemos pela causa da primeira vontade má. Porém, a primeira vontade má, causa da má vontade, não existe, pois a primeira é a não feita por nenhuma outra, porque, se a esta precedeu sua autora, lhe é anterior por ser sua causa. E, se se objeta não havê-la feito nenhum ser e, portanto, haver existido sempre, pergunto: Em al guma natureza? Se não existiu em alguma natureza, não existiu. Se existiu em alguma, viciava-a, corrompia-a, era-lhe nociva e, por conseguinte, privava-a de bem. Por esse motivo a má vontade não podia existir na natureza má e sim na boa, porém, mutável, susceptível de ser prejudicada pelo vício. Se o vício não prejudi cou, não foi vício e, portanto, a vontade não deve ser chamada má. Se prejudicou, é fora de dúvida que prejudicou, privando de bem ou diminuindo-o, pois não é possível que existisse eterna vontade má em ser em que houvesse precedente bem natural, que a má vontade é capaz de eliminar, prejudicando.
Logo, se não era eterna, pergunto: Quem a fez? Há uma resposta apenas: A má vontade é obra de ser que não teve vontade alguma. Mas pergunto de novo: É-lhe superior, inferior ou igual esse ser? Se superior, é realmente melhor que ela. Por que, pois, não há de ter vontade e não há de ter vontade boa? Poder-se-ia dizer a mesma coisa, se fosse igual, porque dois seres, enquanto simultaneamente são de boa vontade, não causam um ao outro a vontade má. Resta que ser inferior, carecente de vontade, seja a causa da má vontade da natureza angélica, que pecou primeiro. Mas, seja qual for esse ser inferior, mesmo a ínfima terra, por ser natureza e essência, é bom e tem modo e espécie em seu gênero e ordem.
Como, pois, ser bom é causa eficiente da vontade má? Como, em suma, pode o bem ser causa do mal? Quando a vontade, abandonando o superior, se converte às coisas inferiores, torna-se má, não por ser mau o objeto a que se converte, mas por sermá a própria conversão. Portanto, não é causa da vontade má o ser inferior; ela é que é sua própria causa, por haver apetecido mal e desordenadamente o ser inferior. Se duas pessoas de iguais dis posições corporais e anímicas vêem a beleza de determinado cor po e, uma vez vista, uma delas se decide a desfrutá-la ilicitamente e a outra persevera em vontade casta, qual a causa, de acordo com nosso modo de pensar, de que naquela se produza a má vontade e nesta não? Que coisa a causou naquela em que foi causada? É certo que a beleza do corpo, não, posto não havê-la causado em ambas, apesar de não haver-se apresentado de modo diferente aos olhos de uma e de outra. É, porventura, causa a carne de quem olha? Será por acaso o espírito? E por que não o de ambas, se, por hipótese, as disposições corporais e anímicas eram idênticas nas duas pessoas? Ou será que se deve dizer que uma delas foi tentada por oculta sugestão de espírito maligno? Como se não fora a própria vontade a que dá consentimento a tal sugestão e a qualquer outra insinuação.
Buscamos precisamente a causa de semelhante consentimento, da má vontade que se abandona ao pérfido conselheiro. Para evitar a dificuldade, suponhamos que ambas as pessoas são ten tadas pela mesma tentação e uma cede e consente, enquanto a outra, a mesma de antes, lhe resiste. Que é possível dizer, senão que uma quer e a outra não quer renunciar à castidade? E qual a causa, senão a própria vontade, pois em ambas as pessoas rei nava a mesma disposição de espírito e corpo? Seus olhos contem plaram simultaneamente a mesma beleza e, simultaneamente, a mesma tentação as aguilhoou. Bem consideradas as coisas, em nenhuma delas ocorreu nada que aos investigadores desse a co nhecer a causa de sua má vontade. Se dissermos que ela mesma a produziu, que era, antes de ter má vontade, senão natureza boa, cujo autor é Deus, bem imutável? E a quem disser que a que deu assentimento ao tentador e conselheiro, fazendo uso ilícito do cor po formoso, presente à vista de ambas, que antes da visão e da tentação eram semelhantes de espírito e corpo, fez sua má von tade, admitindo que antes de ter má vontade era boa, pergunto: Por que a fez, porque é natureza ou porque foi feita do nada? Verificar-se-á não haver a má vontade começado a existir por ser natureza, mas por haver sido feita do nada. Porque, se a natureza é causa da má vontade, vemo-nos obrigados a dizer que o mal é efeito do bem e o bem, portanto, é causa do mal, visto como, por hipótese, a má vontade é produzida pela natureza boa. E como é possível que a natureza boa, embora mutável, cause algo mau, a saber, a má vontade, antes de ter vontade má?
Não se deve buscar a causa eficiente da má vontade
Ninguém busque, pois, a causa eficiente da má vontade. Tal causa não é eficiente, mas deficiente, porque a má vontade não é “efecção" , mas " defecção" . Declinar do que é em sumo grau ao que é menos é começar a ter má vontade. Empenhar-se, portanto, em buscar as causas de tais defeitos, não sendo eficientes, mas, como já dissemos, deficientes, é igual a pretender ver as trevas ou ouvir o silêncio. E, contudo, ambas essas coisas nos são conhe cidas, uma pelos olhos e outra pelos ouvidos, não, porém, em sua espécie, mas na privação da espécie. Ninguém, por conseguinte, procure aprender de mim o que sei que não sei, mas espere apren der a não saber o que se deve saber ser impossível saber. Com efeito, as coisas que não se conhecem em sua espécie, mas na privação da espécie, se podemos falar assim, se conhecem, de certo modo, não conhecendo-as e não se conhecem, conhecendo-as. Quando a penetração do olho corporal se projeta sobre as espécies corporais, só vê as trevas quando começa a não ver. De igual modo, o sentir o silêncio pertence aos ouvidos, não a outro sentido, e somente se sente, não ouvindo. Assim, nossa mente contempla com o entendimento as espécies inteligíveis. Quando faltam, porém, concebe-as, ignorando-as. Com efeito, quem conhece os delitos?
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