Espanta-me( Gl 1.6-8). O apóstolo começa com uma reprimenda, ainda que algo um tanto mais brando do que mereciam. Prefere, porém, dirigir sua ira contra os falsos apóstolos, como veremos. Ele acusa os gaiatas de apostasia, não só em relação ao ensino do apóstolo, mas em relação a Cristo mesmo. Pois só poderiam conservar a Cristo através do reconhecimento de que é por meio de seu benefício que nos tornamos livres da escravidão da lei. Mas a necessidade de cerimônias que os falsos apóstolos estabelecem é frontalmente contrária a isso. Por isso estavam afastados de Cristo, não porque rejeitassem inteiramente o Cristianismo, mas porque, numa corrupção de tal proporção, só lhes fora deixado um Cristo fictício. Assim também hoje, os papistas decidiram conservar um Cristo pelas metades e um Cristo mutilado, e nada mais, e estão, portanto, separados de Cristo. Estão saturados de superstições, as quais são frontalmente opostas à natureza de Cristo. Deve-se observar criteriosamente que estamos separados de Cristo quando aceitamos o que é inconsistente com seu ofício mediatorial; porquanto a luz não pode misturar-se com as trevas.
Pela mesma razão, ele o chama outro evangelho, ou seja, outro evangelho além do genuíno. E no entanto os falsos apóstolos alegavam pregar o evangelho de Cristo; mas, ao mutilá-lo com suas próprias invenções, destruíam a força motriz do evangelho para em seguida defender um evangelho falso, corrompido e espúrio. O apóstolo usa o verbo no tempo presente, como se, até então, estivessem, por assim dizer, apenas em processo de queda. E como se dissesse: "No entanto, não digo que já estais separados. Se esse fosse o caso, teria sido muito mais difícil voltardes ao caminho. Agora, porém, enquanto vos achais ainda no caminho, retrocedei; não deis sequer um passo adiante."
Algumas versões trazem: "daquele que vos chamou pela graça de Cristo", subentendendo o Pai. Mas a redação que temos adotado é mais simples. Ao dizer que foram chamados por Cristo através da graça, é como se o apóstolo reprovasse sua ingratidão. Desertar-se do Filho de Deus é algo por si só desonroso e desditoso; mas desertamo-nos dele, quando ele nos chamou graciosamente para a salvação, é algo muito mais terrível, visto que sua bondade para conosco, tendo como resposta nossa ingratidão, intensifica ainda mais a gravidade do pecado.
Tão depressa. Ele põe ênfase na perversidade da inconstância dos gaiatas. Não existe ocasião que justifique nossa deserção de Cristo; mas os gaiatas eram muito mais censuráveis diante do fato de que voltaram atrás no momento em que Paulo os deixou. Portanto, assim como sua ingratidão se revelara quando pela primeira vez o apóstolo a confrontou com a graça da vocação, assim agora ele intensifica sua leviandade ao mencionar o tempo decorrido.
7. O qual não é outro. Há quem apresente a seguinte explicação: "Embora não exista outro evangelho" - como se fosse uma freada contra alguém que cresse na existência de outro evangelho. No que tange à explicação das palavras, faço-a de uma forma mais simples, ou seja: o apóstolo fala desdenhosamente do ensino dos falsos apóstolos como sendo a única causa de confusão e destruição. Parafraseando: "O que eles propõem? Sobre que bases atacam a doutrina que tenho anunciado? Simplesmente vos perturbam e destroem o evangelho.
É tudo o que sabem fazer." Mas isso vem a ser a mesma coisa, pois admito que essa expressão corrige o que ele disse acerca de outro evangelho. Ele declara que tal coisa não era o evangelho, senão uma mera sublevação. Tudo o que eu quis dizer é que, em minha opinião, 'outro' significa 'outra coisa'. Como às vezes dizemos: "Isso não significa outra coisa, senão que sua intenção é enganar/7
E querem perverter. Ele os culpa de um segundo crime, ou seja, de fazer injúria a Cristo, querendo destruir o seu evangelho. E esse é um crime em extremo terrível; pois a destruição é pior que a corrupção. E ele os acusa com boas razões. Quando a glória de justificar uma pessoa é transferida para outro, e uma armadilha se arma para as consciências, o Salvador não mais permanece firme e o ensino do evangelho é arruinado. Pois devemos sempre tomar o máximo cuidado com os artigos primordiais do evangelho. Aquele que os ataca é um destruidor do evangelho.
Ao adicionar as palavras, de Cristo, isso pode explicar-se de duas formas: ou que ele [o evangelho] veio de Cristo, como seu Autor, ou que ele simplesmente exibe a Cristo. Mas não há dúvida de que o apóstolo, com esse termo, pretendia descrever o verdadeiro e genuíno evangelho, o único que deve ser considerado como evangelho.
8'. Mas ainda que nós. Aqui o apóstolo se ergue com grande ousadia para defender a autoridade de seu ensino. Em primeiro lugar, ele declara que a doutrina que ele tinha pregado é o único evangelho, e que é uma atitude ímpia tentar subvertê-lo. Caso contrário, os falsos apóstolos poderiam objetar: "Nós também queremos manter o evangelho incorruptível, nem sentimos por ele menos reverência que a que tu sentes/7 Justamente como hoje os papistas proclamam quão santo lhes é o evangelho, e beijam a própria palavra [evangelho] com a mais profunda reverência. Mas quando chega o momento de provar tal coisa, promovem feroz perseguição à doutrina do evangelho em sua pureza e simplicidade. Portanto, Paulo não se satisfaz com essa declaração geral, senão que define o que o evangelho é e o que ele contém e pronuncia que seu ensino é o genuíno evangelho, para que não se vá buscá-lo em qualquer outra fonte.
Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o ele significa? Para os papistas, que se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde não haja conhecimento. A fim de que os gaiatas, que ao contrário estavam dispostos a obedecer ao evangelho, não vagueassem sem rumo sem encontrar firme fundamento em que se apoiassem, Paulo lhes ordena a permanecerem na doutrina que ele lhes ensinara. Ele exige uma confiança tal em sua pregação, que pronuncia uma maldição sobre todos aqueles que ousassem contradizê-lo. Era-lhe também necessário começar consigo mesmo. E assim ele antecipa uma calúnia por parte de seus desafetos: "Tu queres ter tudo o que procede do que recebeste, e sem hesitação, só porque te pertence." Para mostrar que não há nisso o menor fundamento, o apóstolo é o primeiro a resignar o direito de promover qualquer coisa contra este ensino. Ao proceder assim, ele não se sujeita aos demais, senão que, como é justo, põe a todos juntamente consigo numa só categoria, para que todos se sujeitassem à Palavra de Deus.
Com o fim de fulminar os falsos apóstolos ainda mais violentamente, ele evoca os próprios anjos. Também não diz simplesmente que não deveriam ser ouvidos caso anunciassem algo diferente, mas declara que devem ser tidos como seres execráveis. Alguém pode concluir que era totalmente errôneo envolver os anjos numa controvérsia acerca de doutrina; mas qualquer um que considere a questão apropriadamente verá que ele tinha que proceder assim. Com toda certeza é impossível que os anjos celestiais ensinem qualquer coisa além da pura verdade de Deus. Mas quando havia controvérsia concernente à fé na doutrina que Deus revelara sobre a salvação dos homens, ele não considerava como suficiente refutar o julgamento humano sem também evocar o mais elevado julgamento angelical.
E assim, não é supérfluo que o apóstolo pronuncie um juízo de anátema sobre os anjos, caso ensinassem algo mais, ainda quando seu argumento tenha por base uma impossibilidade. Pois tal hipérbole contribuiu para aumentar a autoridade da pregação de Paulo. Ele percebeu que tanto ele como seu ensino eram atacados mediante o uso de nomes famosos. Então responde que nem mesmo os anjos têm autoridade para prejudicá-lo. Isso de forma alguma constitui uma ofensa aos anjos. Eles foram criados para realçar a glória de Deus por todos os meios possíveis. Portanto, se alguém, com esse mesmo intuito piedoso, os deprecia, não detrai um mínimo sequer de sua dignidade. Desse fato, porém, não só retemos a imensa majestade da Palavra de Deus, mas também nossa fé recebe um extraordinário revigoramento, quando, em confiança na Palavra de Deus, podemos triunfar sobre a tendência de falar mal dos anjos.
Quando o apóstolo diz: que o mesmo seja maldito, "que vós" deve ser subentendido. Falamos sobre a palavra 'anátema' em 1 Coríntios 123. Aqui ela denota maldição.
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