Segundo o profeta Miquéias, Deus nos ordenou não apenas que sejamos misericordiosos, mas que amemos a misericórdia. "Ele te declarou, ó homem, o que é bom e o que é que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus" (Mq 6.8). Em outras palavras, a ordem não é apenas perpetrar atos de misericórdia, mas gostar de ser misericordioso e querer ser misericordioso. Se você gosta de ser misericordioso, como abster-se de satisfazer o próprio desejo de praticar atos de misericórdia? Como abster-se de buscar a própria alegria em atos de amor, quando sua alegria consiste em ser amoroso? Será que a obediência ao mandamento de "amar a misericórdia" significa que você tem de desobedecer ao ensino de ICoríntios 13.5, de que o amor não deve "buscar os seus interesses"?
Não. O contexto mais próximo nos dá várias pistas de que 1Coríntios 13.5 não pretende proibir a busca da alegria de amar. Jonathan Edwards traz o verdadeiro sentido ao dizer que o erro ao qual ICoríntios se opõe não e ... até que ponto [a pessoa] ama sua própria felicidade, mas de pôr sua felicidade onde não deve e de limitar e restringir seu amor, Alguns, apesar de amarem sua própria felicidade, não põem essa felicidade em seu próprio bem restrito, ou no bem limitado a eles mesmos, mas concentram-se no bem comum — que é o bem dos outros, ou o bem que deve ser desfrutado nos outros e pelos outros. [...] E quando se diz que a Caridade não busca o que é seu, temos de compreendê-lo como o bem particular — o bem limitado a Si mesmo.
Será que Paulo admite que não quer ganhar nada? Um indício de que de fato é isso que Paulo quer dizer é a maneira como ele tenta motivar o amor genuíno no v. 3. Diz ele: "Ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará". Se o amor genuíno não se atreve a procurar os seus interesses, não é estranho que Paulo nos adverte que não ter amor nos privará de "proveito"? Mas é isso mesmo que ele está dizendo: "Se você não tiver amor real, não terá ganho real".
Sem dúvida alguém dirá que o proveito é um resultado garantido do amor genuíno, mas se ele for o motivo do amor, então o amor não é verdadeiro. Em outras palavras, é bom que Deus recompense atos de amor, mas não é bom que sejamos atraídos para o amor pela promessa de recompensa. Todavia, se isso é correto, então por que Paulo nos diria no v. 3 que perderemos nossa recompensa se não amarmos de verdade? Se esperar pelo "ganho" de amar arruina o valor moral do amor, é pedagogia muito ruim dizer a alguém que ame para não perder seu "proveito".
Dando a Paulo o benefício da dúvida, não deveríamos dizer que há um tipo de "ganho" pelo qual é errado ser motivado (por isso "o amor não procura os seus interesses"), bem como um tipo de "ganho" pelo qual é correto ser motivado (por isso, "se não tiver amor, nada disso me aproveitará")? Edwards diz que o "proveito" pelo qual é apropriado motivar-se é a felicidade que se obtém pelo ato de amar em si, ou pelo bem conseguido por meio dele.
Será que amor desinteressado pode alegrar-se na verdade? O segundo indício de que Edwards está na trilha certa é o v. 6: "O amor não se alegra com a injustiça, mas rejubila-se com a verdade [ou: com o que é correto]". O amor não é uma simples escolha ou um mero ato. Ele envolve as afeições. Ele não faz simplesmente a verdade. Nem meramente escolhe o que é certo. Ele se rejubila no caminho da verdade. Portanto, Miquéias 6.8 não foi mesmo um paralelo forçado: devemos "amar a misericórdia"!
No entanto, se o amor se alegra nas escolhas que faz, não pode ser desinteressado. Não pode ser indiferente à sua própria alegria! Alegrar-se em uma ação significa tirar alegria dela. E essa alegria é "ganho". Pode ser que haja muito mais ganho do que este, ou que essa alegria de fato seja as primícias de uma alegria indestrutível e eterna. A esta altura, porém, o mínimo que podemos dizer é que Paulo não pensa que o valor moral de uma ação de amor é arruinado quando somos motivados a fazê-la pela previsão da alegria que nós mesmos teremos nela e a partir dela. Se fosse assim, então uma pessoa má, que odeia a idéia de amar, poderia praticar o amor puro, pois não tiraria alegria dele, enquanto a pessoa boa, que tem prazer na idéia de amar, não poderia amar pois "ganharia" alegria disso e assim o arruinaria.
Portanto, ICoríntios 13.5 ("o amor não busca os seus interesses") não impede a tese de que a busca do prazer é uma motivação essencial para toda boa ação. Na verdade, de modo surpreendente o contexto apóia isso dizendo que "o amor rejubila-se com a verdade" e indicando que, ao amarmos, devemos tomar cuidado para não perder nosso "proveito" — o ganho de alegria que vem do fato de ser uma pessoa que ama, tanto agora como para sempre.
Se essa é a intenção de Paulo em ICoríntios 13.5, podemos dizer o mesmo de 10.24 e 33. São simples exemplos específicos do princípio básico exposto em 13.5, "o amor não procura os seus interesses".
Quando Paulo diz que não devemos buscar nossa vantagem mas a do nosso próximo para que ele seja salvo, ele não diz que não devemos nos alegrar na salvação do nosso próximo.
De fato, Paulo disse àqueles que ele levara a Cristo: "Vocês são a minha alegria e meu motivo de satisfação" (lTs 2.19, BLH). Em outro lugar ele disse: "Desejo de todo o coração que o meu próprio povo seja salvo. E peço a Deus em favor deles" (Rm 10.1).
Isso não é a voz da benevolência desinteressada. A salvação de outros era a alegria e a paixão da sua vida! Quando negava confortos a Si mesmo para isso, ele era um hedonista cristão, não um estóico cumpridor de deveres. Portanto, a lição de ICoríntios 10.24 e 33 é que não devemos considerar nenhum conforto pessoal uma alegria maior do que a alegria de ver nossos esforços levarem à salvação de outra pessoa.
Esse também é o sentido de Romanos 15.1-13, em que Paulo diz que não devemos agradar a nós mesmos mas nosso próximo, para o bem dele e para sua edificação. Essa lambem é uma aplicação do princípio de que "o amor não procura os seus interesses". Ele não quer dizer que não devemos buscar a alegria de edificar os outros, mas que devemos deixar essa alegria nos libertar da escravidão aos prazeres pessoais que nos tornam indiferentes ao bem dos outros. O amor não procura sua alegria própria, limitada, mas o bem — a salvação e edificação— dos outros.2 Assim começamos a amar do jeito que Deus ama. Ele ama porque gosta de amar. Não procura ocultar de Si mesmo a recompensa do amor para que sua ação não seja arruinada pela alegria que se espera que venha dela.
Eu sou o SENHOR e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque dessas coisas me agrado, diz o SENHOR (Jr 9.24).
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