Deliciando-se com a criação sem cometer idolatria
Isso na verdade faz parte de uma pergunta muito maior, que é: Como uma criatura pode desejar e alegrar-se na criação sem cometer idolatria (que é adultério)? Para alguns essa pergunta pode parecer ser impertinente. Mas para pessoas que anseiam cantar como os salmistas, ela é muito pertinente. Eles cantam assim:
Quem mais tenho eu no céu?
Não há outro em quem eu me compraza na terra.
Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam,
Deus é a fortaleza do meu coração
e a minha herança para sempre (SI 73.25, 26).
Uma coisa peço ao Senhor,
e a buscarei:
que eu possa morar na Casa do Senhor
todos os dias da minha vida,
para contemplar a beleza do Senhor
e meditar no seu templo (SI 27.4).
Se seu coração anseia por concentrar-se assim em Deus, então como desejar e alegrar-se em "coisas" sem tornar-se um idólatra é uma questão crucial. Como a oração pode glorificar a Deus se ela é uma oração por coisas? Ela parece glorificar coisas.
Naturalmente, parte da resposta foi dada no texto de Robinson Crusoé, ou seja, que Deus recebe a glória como o Doador todo-suficiente. Mas isso é apenas parte da resposta, porque pode haver um mau uso das coisas, mesmo quando agradecemos a Deus como o Doador.
O restante da resposta é dado por Thomas Traherne e por Agostinho. Traherne disse:
Você não se compraz no mundo corretamente enquanto não vê como um grão de areia demonstra a sabedoria e o poder de Deus, e preza em cada coisa o serviço que presta a você, manifestando a glória e a bondade de Deus à sua alma, bem mais que a beleza visível na sua superfície ou os serviços materiais que pode prestar ao seu corpo.
E Agostinho orou com as palavras abaixo, que provaram ser imensamente importantes em meu esforço para amar a Deus de todo o meu coração:
Ama-te muito pouco
Aquele que ama outra coisa junto contigo,
Que ele ama não por tua causa.
Em outras palavras, se coisas criadas são vistas e usadas como dádivas de Deus e como espelhos da sua glória, não precisam ser ocasiões para idolatria —se nosso prazer nelas é sempre também um prazer em quem as fez.
C. S. Lewis o formulou assim em uma "Carta a Malcolm":
Não podemos —ou eu não posso— ouvir o gorjeio de um pássaro simplesmente como um som. Seu sentido ou mensagem ("isto é um pássaro") acompanha-o inevitavelmente— assim como não se pode ver uma palavra conhecida impressa como um mero padrão visual. Ler é tão involuntário como ver. Quando o vento estrondeia eu não ouço simplesmente o estrondo; eu "ouço o vento". Da mesma maneira é possível "ler" assim como "ter" um prazer. Ou nem mesmo "como". A distinção deve tornar-se, e às vezes é, impossível; recebê-la e reconhecer sua origem divina são uma só experiência. Este fruto celestial espalha instantaneamente o aroma do pomar onde cresceu. Essa brisa suave sussurra da terra de onde sopra. É uma mensagem. Sabemos que estamos sendo tocados por um dedo daquela mão direita em que há delícias perpetuamente. Não é preciso haver agradecimentos ou louvor como um evento distinto, algo que se faz depois. O ato de experimentar a pequena teofania já é adoração em si.
Se nossa experiência da criação se torna uma experiência do pomar celestial, ou do dedo divino, então pode ser adoração e não idolatria. Lewis o diz ainda de outra maneira em suas meditações sobre Salmos:
Esvaziando a Natureza da divindade —ou, digamos, das divindades— você pode enchê-la de Deus, porque agora ela é portadora de mensagens. Há um sentido em que a adoração da Natureza a silencia —como quando uma criança ou um débil mental fica tão impressionada com o uniforme do carteiro que esquece de pegar as cartas.
Portanto, pode ser idolatria ou não, orar para que o carteiro venha. Se estamos apenas apaixonados pelos breves prazeres mundanos que seu uniforme nos traz, isso é idolatria. Mas se consideramos o uniforme um bónus grátis que acompanha o prazer real das mensagens divinas, então não é idolatria. Se podemos orar por um cônjuge, um emprego, por cura física, comida ou abrigo por amor a Deus, então mesmo nisso estamos centrados em Deus e não nos revelamos "egocêntricos". Estamos concordando com o salmista: "Não há nada na terra que eu deseje além de ti!" Ou seja, não há nada que eu deseje mais do que o Senhor, e não há nada do que eu quero que não me mostre mais do Senhor.
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