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16 de dez. de 2010

O discipulado e o indivíduo – Dietrich Benhoeffer


Se alguém vem a mim, e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. (Lc 14.26).

O chamado de Jesus ao discipulado faz do discípulo um indivíduo. Querendo ou não, ele tem que se decidir, tem que tomar sua decisão sozinho. Não é indivíduo espontaneamente; Cristo é que faz do ser humano chamado um indivíduo. Cada qual é chamado individualmente e tem que ser discípulo sozinho. Com receio desta solidão, o ser humano procura proteção junto às pessoas e coisas que o cercam. Apercebe-se, de súbito, de todas as suas responsabilidades e apega-se a elas. Encoberto por elas, deseja tomar sua decisão, mas não quer encontrar-se sozinho perante Jesus e ter que decidir-se com o olhar fixo somente nele. Mas, nesta hora, o ser humano chamado não pode ocultar-se por detrás de pai e mãe, mulher e filhos, povo e história. Cristo quer que o ser humano fique só, que nada mais enxergue senão aquele que o chamou.

No chamado de Jesus, encontra-se já realizado o rompimento com as circunstâncias naturais em que o ser humano vive. Não é o discípulo que provoca esse rompimento, mas o próprio Cristo já o concretizou ao pronunciar seu chamado. Cristo libertou o ser humano de sua relação imediata com o mundo e o transportou para uma relação imediata consigo mesmo. Ninguém pode seguir a Cristo sem que reconheça e confirme o rompimento já realizado. Não é a arbitrariedade de uma vida em teimosia, mas é o próprio Cristo que conduz o discípulo a este rompimento.

Por que isso precisa ser assim? Por que não haveria um crescimento contínuo, uma transição lenta, santificante, das ordens naturais para dentro da comunhão de Cristo? Qual o poder incômodo que vem se interpor entre o ser humano e as ordens de sua vida natural dadas por Deus? Não seria este rompimento um metodismo legalista? Não constitui ele o triste desprezo dos belos dons de Deus, que nada tem em comum com a liberdade cristã? De fato, algo se interpõe entre a pessoa que é chamada por Cristo e as circunstâncias de sua vida natural. No entanto, não se trata, de forma alguma, de um triste desprezador da vida, de uma lei da piedade; antes, é a vida, é o próprio Evangelho, o próprio Cristo. Com sua encarnação, Cristo colocou-se entre mim e as circunstâncias do mundo. Já não posso recuar: ele está de permeio. Privou a pessoa que foi chamada da relação imediata com tais circunstâncias. Ele quer ser o mediador, e tudo deve se processar através dele. Não se coloca apenas entre mim e Deus, mas está igualmente entre mim e o mundo, entre mim e os outros seres humanos e coisas. Ele é o Mediador, e isso não somente entre Deus e os seres humanos, mas também entre ser humano e ser humano, e entre o ser humano e a realidade. Porque todo o mundo foi criado através dele e para ele (Jo 1.3; 1 Co 8.6; Hb 1.2), ele é o único Mediador do mundo inteiro. Desde Cristo já não há nenhuma relação imediata, quer entre o ser humano e Deus, quer entre o ser humano e o mundo; Cristo quer ser o Mediador. É certo que se oferecem bastantes deuses que concedem ao ser humano um acesso imediato; o mundo procura, por todos os meios, ter uma relação imediata com o ser humano, mas é justamente nesse ponto que reside a inimizade contra Cristo, o Mediador. Tais deuses e o mundo querem arrebatar de Cristo o que ele lhes tirou, a exclusividade do relacionamento imediato com o ser humano.

O rompimento com as coisas imediatas do mundo nada mais é do que o reconhecimento de Cristo como Filho de Deus e Mediador. Nunca é um ato voluntário em que, por amor de qualquer ideal, um ser humano se liberta dos laços que o prendem ao mundo, um ideal menor que se troca por outro maior. Isso seria espírito entusiasta, arbitrariedade, sim, uma vez mais, uma relação imediata com o mundo. Somente o reconhecimento do fato consumado, é, que Cristo é o Mediador, separa o discípulo de Jesus do mundo dos seres humanos e das coisas. O chamado de Jesus, quando não compreendido como ideal, mas como Palavra do Mediador, realiza em mim esse rompimento já realizado com o mundo. Caso se tratasse de avaliação de ideais, sempre seria preciso procurar uma compensação, que, talvez, fosse a opção por um ideal cristão, mas que nunca poderia ser unilateral. Do ponto de vista do ideal, das "responsabilidades" da vida, não se justificaria uma desvalorização radical das ordens naturais da vida em relação ao ideal de vida cristão. Haveria, até, muito que dizer a favor de uma avaliação inversa - justamente, note-se, do ponto de vista de um idealismo cristão, de uma ética da responsabilidade ou consciência cristã! Todavia, como, de forma de ideais, avaliações ou responsabilidades, mas sim de fatos consumados e de seu reconhecimento, ou seja, da pessoa do próprio Mediador que se ergue entre nós e o mundo, por isso é que somente existe o rompimento com as coisas imediatas do mundo, por isso o discípulo deve tornar-se indivíduo perante o Mediador.

A pessoa que foi chamada por Jesus aprende, assim, que tem vivido iludida na sua relação com o mundo. Essa ilusão chama-se "relação imediata". Esta ilusão prejudicou-a na fé e na obediência. Agora, porém, sabe que já não pode ter relações imediatas nem nos laços mais estreitos de sua vida, nos laços de sangue com pai e mãe, com os filhos, irmãos e irmãs, no amor conjugai, nas responsabilidades históricas. Desde Jesus, já não existem para seus discípulos quaisquer relações imediatas naturais, históricas ou empíricas. Entre pai e filho, marido e mulher, entre o indivíduo e o povo, ergue-se Cristo, o Mediador, quer consigam reconhecê-lo, quer não. Não há para nós qualquer caminho ao semelhante que não seja o caminho através de Cristo, da sua Palavra e de nosso discipulado. A relação imediata é ilusão.

Como, porém, a ilusão merece ser odiada por nos ocultar a verdade, a relação imediata com as circunstâncias naturais da vida deve ser odiada por amor do Mediador, Jesus Cristo. Sempre que uma relação nos impeça de nos encontrarmos com Cristo como indivíduo, sempre que uma comunhão reivindique relações imediatas, deve ser odiada por amor de Cristo, pois cada relação imediata, consciente ou inconsciente, é ódio a Cristo, ao Mediador, até mesmo e em especial quando quer ser considerada cristã.

A teologia erra grandemente quando se serve da mediação de Jesus entre Deus e os seres humanos para justificar as relações imediatas da vida. Se Cristo é o Mediador, diz-se, então carregou os pecados de todas as nossas relações imediatas com o mundo, justificando-nos nelas. Jesus é nosso Mediador para com Deus, para que, em sã consciência, possamos nos colocar novamente numa relação imediata com o mundo - esse mundo que crucificou a Jesus. Assim, o amor de Deus e o amor do mundo são reduzidos ao mesmo denominador. O rompimento com as circunstâncias do mundo transforma-se num mal-entendido "legalista" da graça de Deus, que queria poupar-nos justamente deste rompimento. As palavras de Jesus sobre o ódio às relações imediatas transformam-se, muito naturalmente, na alegre confirmação das "realidades do mundo dadas por Deus". A justificação do pecador converte-se, uma vez mais, em justificação do pecado.

Para o discípulo de Jesus, "realidades dadas por Deus" somente existem através de Jesus Cristo. Aquilo que não me é dado através de Cristo feito ser humano não me foi dado por Deus. O que não me é dado por amor de Cristo não vem de Deus. O agradecimento pelos dons da criação acontece através de Jesus Cristo, e a prece pela conservação graciosa desta vida realiza-se por amor dele. Aquilo pelo qual não posso agradecer por amor de Cristo, não o devo agradecer de modo algum, pois isso se torna pecado para mim. Também o caminho para "a realidade dada por Deus", que é meu semelhante com o qual convivo, passa por Cristo, ou então é um caminho transviado. Todas as nossas tentativas para lançar uma ponte sobre o abismo que nos separa dos outros, de vencer, por meio de laços naturais ou da alma, a distância intransponível, o caráter diferente e estranho dos outros seres humanos, todas essas tentativas têm que fracassar. Não há um caminho próprio de ser humano para ser humano. A mais amável tentativa de compreensão, a psicologia mais sofisticada, a franqueza mais natural não conduzem ao outro; não há qualquer relação imediata entre as almas. Cristo é o Mediador, e somente através dele é que há caminho para o próximo. Por isso: a intercessão é o caminho mais promissor para chegarmos aos outros, e a oração conjunta em nome de Cristo constitui a mais genuína comunhão.

Não há qualquer conhecimento verdadeiro dos dons de Deus sem o conhecimento do Mediador, por amor do qual tão-somente eles nos são dados. Não há nenhuma ação de graças genuína por povo, família, história e natureza sem um profundo arrependimento que dá exclusivamente a Cristo a honra suprema. Não há relação genuína com as realidades circunstanciais do mundo criado, não há responsabilidades genuínas no mundo, sem o reconhecimento do rompimento que já nos separou do mundo. Não há amor genuíno pelo mundo a não ser aquele amor com que Deus amou este mundo em Jesus Cristo. "Não amem o mundo" (1 Jo 2.15), mas: "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." (Jo 3.16).

É inevitável o rompimento com as relações imediatas. Se ele se realiza externamente, no rompimento com a família ou com o povo, ou sendo chamados a ostentar visivelmente o opróbrio de Cristo, a tomar sobre nós a acusação de misantropia (odium generis humani [ódio ao gênero humano]), ou se o rompimento permanece oculto, conhecido apenas por nós mesmos, mas com o espírito pronto a torná-lo visível a todo momento - isso não constitui diferença definitiva. Abraão constituiu-se no modelo para ambas as possibilidades. Teve que abandonar suas amizades e a casa paterna; Cristo colocou-se entre ele e seus parentes. O rompimento teve que tornar-se visível. Abraão tornou-se forasteiro por amor da terra prometida. Foi esse seu primeiro chamado. Mais tarde, Abraão recebeu a ordem de sacrificar seu filho Isaque. Cristo ergueu-se entre o pai da fé e o filho da promessa. Foi destruída aqui não somente a relação imediata natural, mas também a própria relação imediata espiritual. Abraão tinha que aprender que a promessa também não depende de Isaque, mas exclusivamente de Deus. Ninguém toma conhecimento deste chamado, nem mesmo os servos que acompanham Abraão ao local do holocausto. Abraão fica completamente só. Uma vez mais, ele é totalmente indivíduo, como quando saiu da casa paterna. Aceita o chamado tal como foi pronunciado; não procura interpretá-lo ou espiritualizá-lo; aceita a palavra de Deus e está pronto a obedecer. Contra toda relação imediata natural, contra toda relação imediata ética, contra toda relação imediata religiosa, ele vai ser obediente à Palavra de Deus. Leva o filho para o sacrificar; está disposto a concretizar de modo visível esse rompimento oculto, por amor do Mediador. Na mesma hora, torna a receber tudo aquilo que havia dado. Abraão recebe novamente o filho. Deus mostra-lhe uma vítima melhor que deverá substituir Isaque. Isso é uma mudança total. Abraão tornou a receber Isaque, mas passa a tê-lo de forma diferente. Tem-no, agora, graças ao Mediador, e também por amor dele. Como aquele que estava pronto a escutar e a pôr literalmente em prática a ordem de Deus, pode ter Isaque como se não o tivesse, pode tê-lo através de Cristo. Ninguém mais sabe disso. Abraão volta da montanha na companhia de Isaque, tal como subira, tudo, porém, estava mudado. Cristo se colocara entre pai e filho. Abraão tinha abandonado tudo e seguira a Cristo. E, no meio do discipulado, se permite a ele tornar a viver no mundo em que vivia antes. Exteriormente, tudo ficou como antes. Porém, as coisas antigas já passaram e tudo se fez novo. Tudo teve que passar através de Cristo.

Esta é a outra possibilidade de ser indivíduo, de ser discípulo de Cristo no seio da comunidade, no meio do povo, na casa paterna, no contato com os bens e a propriedade. Mas quem foi chamado a essa existência foi Abraão, aquele que antes atravessara ele próprio a barreira do rompimento visível, e cuja fé se tornou padrão para o Novo Testamento. Gostaríamos muito de generalizar esta possibilidade de Abraão, gostaríamos de entendê-la de maneira legalista, e, colocarmo-nos, sem mais nem menos, a nós próprios nesta situação. Esta também seria exatamente nossa existência cristã: seguir a Cristo em plena posse de nossos bens materiais e assim ser indivíduo. Certo, porém, é que o caminho do rompimento externo é bem mais fácil para o cristão do que carregar silenciosamente este rompimento na fé. Quem não sabe estas coisas, quem não o aprendeu através das Escrituras ou da experiência, engana-se com certeza ao enveredar pelo outro caminho. Cairá, de novo, na relação direta e perderá a Cristo.

Nós não temos liberdade de escolher esta ou aquela possibilidade. De acordo com a vontade de Jesus, seremos arrancados da relação imediata de uma ou de outra forma e deveremos tornar-nos indivíduos, visível ou ocultamente.

O mesmo Mediador, porém, que nos fez indivíduos constitui também o fundamento de uma comunhão totalmente nova. Ele está entre mim e os outros. Separa, mas une também. E certo que, assim, fica cortado todo e qualquer caminho imediato de mim para alguém outro; o discípulo, porém, aprende o novo e verdadeiro acesso ao semelhante, que, a partir de agora, passará pelo Mediador.

Então Pedro começou a dizer-lhe: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos. Tomou Jesus: Em verdade lhes digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e no mundo por vir a vida eterna. Porém, muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros. (Mc 10.28-31).

Jesus está falando aqui a pessoas que se tornaram indivíduos por amor dele, que, a seu chamado, tudo abandonaram e podem afirmar a respeito de si mesmas: "Eis que nós tudo deixamos e te seguimos". A estas é dada a promessa de uma nova comunhão. De acordo com as palavras de Jesus, receberão, já neste tempo, o cêntuplo do que abandonaram. Jesus refere-se à sua Igreja, que se encontra nele. Quem abandona seu pai por amor de Jesus encontra, com certeza, outro pai, encontra irmãos e irmãs, sim, até mesmo campos e casas lhe estão preparados. Todos entram sozinhos no discipulado, mas ninguém fica sozinho nele. A pessoa que ousa tomar-se indivíduo, confiante na Palavra, recebe a comunhão da Igreja. Toma a encontrar-se numa comunhão visível, que a compensa cem vezes por aquilo que perdeu. Cem vezes? Sim, pelo fato de, agora, ter tudo tão-somente através de Jesus, do Mediador, o que naturalmente significa "com perseguições". "Cem vezes" - "com perseguições", esta é a graça da Igreja que segue o Senhor sob a cruz. Esta é, pois, a promessa para os discípulos, a de se tomarem membros da comunidade da cruz, povo do Mediador, povo sob a cruz.

Estavam de caminho para Jerusalém, e Jesus ia adiante dos seus discípulos. Estes se admiravam e o seguiam tomados de apreensões. E Jesus, tornando a levar à parte os doze, passou a revelar-lhes as coisas que lhe deviam sobrevir. (Mc 10.32).

Como para confirmar a seriedade de seu chamado ao discipulado e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de ser discípulo por forças próprias e ainda a promessa de lhe pertencerem sob muitas perseguições, Jesus sobe para Jerusalém, para a cruz, e os que o seguem admiram-se e espantam-se com o caminho para o qual os chama. 

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