O princípio de sola Scriptura espreitava no pano de fundo durante todo o debate sobre justificação. A recusa de Lutero de se retratar em Worms trouxe isto ao primeiro plano. Desse ponto em diante, sola Scriptura se tornou um grito de guerra para protestantes.
O termo sola Scriptura simplesmente quer dizer "somente pela Escritura". Essa frase declarava a idéia de que só a Bíblia tem autoridade de obrigar as consciências dos crentes. Os protestantes reconheciam outras formas de autoridade, como cargos da igreja, magistrados civis, credos e confissões eclesiásticas. Mas viam essas autoridades como sendo derivadas de e subordinadas à autoridade de Deus. Nenhuma dessas autoridades menores era considerada absoluta, porque todas elas eram capazes de erro. Somente Deus é infalível. Autoridades falíveis não podem constranger a consciência de modo absoluto; este direito é reservado somente a Deus e à sua Palavra.
Um mal-entendido comum é dizer que os reformadores criam na autoridade infalível da Escritura enquanto que a Igreja Católica Romana cria somente na autoridade infalível da igreja e sua tradição. É uma distorção da controvérsia. No tempo da Reforma ambas as partes reconheciam a autoridade infalível da Bíblia. A dúvida era esta: "É a Bíblia a única fonte infalível de revelação especial?"
Os católicos romanos ensinavam que há duas fontes de revelação especial infalível, a Escritura e a tradição. Visto que atribuíam essa autoridade à tradição da igreja, eles não permitiam a ninguém que interpretasse a Bíblia de um modo que fosse contrário a essa tradição. Foi precisamente isto que Lutero fez, o que levou à sua excomunhão e à condenação de sua doutrina.
Os reformadores concordaram que há duas espécies de revelação divina: geral e especial. Revelação geral, por vezes chamada de revelação natural, refere-se à revelação de Deus de si mesmo na natureza. O apóstolo Paulo declara isso em Romanos:
"A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis" (Rm 1.18-20).
Como vimos, essa revelação é chamada "geral" tanto por causa de seu público como de seu conteúdo. Todas as pessoas recebem a revelação de Deus na natureza, mas nem todas têm lido a Escritura (revelação especial) nem sido expostas ao seu ensino. A revelação geral não revela a história da redenção nem a pessoa e obra de Cristo; a revelação especial sim.
Embora os reformadores distinguissem entre revelação geral e especial, eles insistiam em que há uma só fonte escrita de revelação especial, a Bíblia. Isto é a sola de sola Scriptura. A razão principal da palavra só é a convicção de que a Bíblia é inspirada por Deus, enquanto que os credos e pronunciamentos da igreja são obras de homens. Essas obras menores podem ser corretas e brilhantemente concebidas, captando os melhores discernimentos de estudiosos, mas não são a inspirada Palavra de Deus.
A INSPIRAÇÃO DAS ESCRITURAS
Os reformadores mantinham uma visão alta da inspiração da Bíblia. A Bíblia é a Palavra de Deus, o verbum Dei, ou a voz de Deus, a vox Dei. Por exemplo, João Calvino escreve:
Quando aquilo que professa ser a Palavra de Deus é reconhecido ser isso, nenhuma pessoa, a não ser que seja desprovida de juízo comum e sentimen¬tos de homem, terá a audácia desesperada de recusar dar crédito a quem fala. Mas visto que respostas diárias não são dadas do céu, e as Escrituras são os únicos registros em que Deus se agradou consignar sua verdade para lembrança perpétua, a plena autoridade que deveriam possuir com os fiéis não é reconhecida, a não ser que se creia que vieram do céu, tão diretamente como se Deus tivesse sido ouvido pronunciando-as para eles.
"Como se" não significa que Calvino cria que a Bíblia tivesse caído do céu diretamente ou que Deus mesmo escreveu as palavras nas páginas da Escritura. Em vez disso "como se" se refere ao peso da autoridade divina que está presente nas Escrituras. Essa autoridade está enraizada e funda¬mentada no fato de que a Escritura foi originalmente dada sob inspiração divina. Essa reivindicação está de acordo com a reivindicação de autorida¬de da própria Bíblia: "Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2Tm 3.16,17).
A declaração de Paulo da inspiração da Escritura faz referência à sua origem. Ele usa a palavra grega theopneust que significa "respirada por Deus". Embora a palavra seja usualmente traduzida "inspirada", que significa "respirar para dentro", tecnicamente theopneust se refere a respirar para fora, que poderia mais acertadamente ser traduzida "expirada". Paulo está dizendo que a Escritura é "expirada" ou "respirada para fora" por Deus. Essa não é uma mera insignificância. É óbvio que para a inspiração acontecer precisa haver primeiro uma expiração. Uma expiração precisa preceder uma inspiração. O ponto é que a obra da divina inspiração é realizada por uma divina expiração. Visto que Paulo diz que a Escritura é expirada por Deus, a origem ou fonte da Escritura precisa ser o próprio Deus.
Quando Calvino e outros falam da inspiração da Escritura, eles se referem ao modo como Deus capacitou os autores humanos da Escritura a atuar, de modo que escreveram cada palavra sob superintendência divina. A doutrina da inspiração declara que Deus capacitou os escritores humanos da Escritura a serem agentes de divina revelação, para que o que escreveram não fosse só escrita deles, mas, em um sentido mais alto, a própria Palavra de Deus. A origem do conteúdo da Escritura é encontrada, em última análise, em Deus.
Muito debate tem ocorrido a respeito do modo ou método exato dessa inspiração divina. Alguns têm defendido uma inspiração mecânica ou ditada, reduzindo os autores humanos a máquinas robóticas ou estenógrafos passivos que meramente registram as palavras ditadas a eles por Deus.
Mas as Escrituras em si não fazem essa reivindicação. O modo ou maneira exata da divina inspiração não é explicado nos mínimos detalhes. O ponto crucial da reivindicação bíblica à autoridade é que Deus é a fonte que inspirou sua palavra. Fica claro, pelo estudo da própria Bíblia, que os estilos individuais dos autores permanecem intactos. A inspiração da Bíblia se refere então à divina superintendência da Escritura, preservando-a da intrusão de erro humano. Refere-se à preservação de Deus de sua Palavra pelas palavras de autores humanos.
A INFALIBILIDADE DAS ESCRITURAS
Os reformadores estavam convencidos de que a Bíblia, por ter sua origem em Deus e ser dirigida pela inspiração dele, é infalível. Infalibilidade se refere à sua indefectibilidade, ou à impossibilidade de ela estar em erro. Aquilo que é infalível é incapaz de falir. Nós atribuímos infalibilidade a Deus e sua obra por causa de sua natureza e caráter. Com respeito à natureza de Deus ele é considerado onisciente. Com respeito a seu caráter, ele é considerado santo e inteiramente justo.
Teoricamente podemos conceber um ser que é justo, mas limitado em seu conhecimento. Tal ser poderia cometer erros em suas falas, não por causa de um desejo de enganar ou ludibriar, mas em razão de sua falta de conhecimento. Cometeria erros honestos. Em termos humanos nós entendemos que pessoas podem fazer afirmações falsas sem contar uma mentira. A diferença entre uma mentira e um simples erro está no nível da intenção. Por outro lado, podemos conceber um ser que seja onisciente, mas mau. Esse ser não poderia cometer um erro por causa da falta de conhecimento, mas poderia dizer uma mentira. Isso claramente envolveria intenção má ou maldosa. Visto, porém, que Deus é tanto onisciente como moralmente perfeito, ele é incapaz de dizer uma mentira ou cometer um erro.
Quando dizemos que a Bíblia é infalível em sua origem, estamos meramente atribuindo sua origem a um Deus que é infalível. Isto não é dizer que os escritores bíblicos foram intrinsecamente ou em si infalíveis. Foram seres humanos que, como outros humanos, provaram o axioma errare humanum est,"errar é humano". É precisamente porque os humanos são dados a erro que, para a Bíblia ser a Palavra de Deus, seus autores humanos necessitaram de ajuda em sua tarefa.
É levantada nos nossos dias a questão da inspiração da Escritura. Nesse ponto alguns teólogos têm procurado (como diz a expressão em inglês) "comer seu bolo e ainda tê-lo". Afirmam a inspiração da Bíblia, enquanto, ao mesmo tempo, negam sua infalibilidade. Argumentam que a Bíblia, apesar de sua inspiração divina, ainda erra. A idéia de erro divinamente inspirado é uma das que fazem engasgar. Recuamos horrorizados da noção de que Deus inspira erro. Inspirar erro exigiria ou que Deus não fosse onisciente ou que ele fosse mau.
Talvez o que esteja em vista na idéia de erro inspirado é que a inspiração, embora procedendo de um Deus bom e onisciente, simplesmente é ineficaz para a tarefa em mãos. Isto é, deixa de realizar o seu propósito intencionado. Nesse caso outro atributo de Deus, sua onipotência, é negociado a ponto de sumir. Talvez Deus simplesmente seja incapaz de superintender a tendência humana de errar dos autores humanos.
Certamente faria mais sentido negar a inspiração completamente do que ligar inspiração com erro. Na verdade, a maioria dos críticos da infalibilidade da Bíblia leva seus machados à raiz da árvore e rejeita a inspiração completamente. Essa parece ser uma abordagem mais honesta e lógica. Evita a impiedade de negar atributos fundamentais ao próprio Deus.
Vamos examinar rapidamente uma fórmula que tem tido alguma aceitação em nossos dias: "A Bíblia é a Palavra de Deus, que erra". Ora, vmos cancelar algumas destas palavras. Apague "A Bíblia é", de modo que se leia a fórmula: "A Palavra de Deus, que erra". Agora apague "A Palavra de" e "que". O resultado é "Deus erra". Dizer que a Bíblia é a Palavra de Deus que erra é claramente se acomodar à fala dupla ímpia. Se é a Palavra de Deus, ela não erra. Se erra, não é a Palavra de Deus. Certamente podemos ter uma palavra sobre Deus que erra, mas não podemos ter uma palavra que erra vinda de Deus.
Que a Escritura tem sua origem em Deus é reivindicado repetidamente pela Bíblia. Um exemplo já notado se encontra na Epístola aos Romanos, de Paulo. Paulo se identifica como sendo "servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus" (Rm 1.1). Na frase "o evangelho de Deus" a palavra de é um genitivo indicando posse. Paulo está falando não meramente de um evangelho que é a respeito de Deus, mas de um evangelho pertencente a Deus. É posse de Deus e vem dele. Resumindo, Paulo está declarando que o evangelho que ele prega não vem dos homens ou de invenção humana; é dado por revelação divina. A controvérsia toda sobre a inspiração e infalibilidade da Bíblia é fundamentalmente uma controvérsia sobre revelação sobrenatural. A teologia reformada é entregue ao Cristianismo como uma fé revelada, uma fé que tem base, não em discernimento humano, mas em informação que vem a nós do próprio Deus.
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