Contra ti, tão-somente contra ti, tenho pecado (Sl 51.4). A opinião de alguns é que neste passo o salmista chama a atenção para a circunstância de seu pecado, embora fosse cometido contra o homem, tendo sido ocultado da vista humana, porém não da vista de Deus. Ninguém tomou conhecimento do duplo crime que infligira a Urias, nem da devassa maneira como expusera seu exército ao perigo; e sendo seu crime desconhecido dos homens, poderia dizer que o havia cometido exclusivamente contra Deus. Segundo outros, Davi, neste passo, notifica que, por mais profundamente tivesse consciência de haver injuriado os homens, ele principalmente se angustiava por haver violado a lei de Deus.
Eu, porém, concebo sua intenção como sendo esta: embora todo o mundo o perdoasse, sentia que Deus era o Juiz a quem teria de enfrentar, que a consciência o atraíra ao seu tribunal, e que a voz do homem não poderia administrar-lhe nenhum lenitivo, por mais que este estivesse disposto a perdoar, ou a escusar, ou a lisonjear.
Seus olhos e toda sua alma estavam voltados para Deus, indiferente do que o homem pudesse pensar ou dizer concernente a ele. Para alguém que se vê assim esmagado pelo senso do pavor, de ser odioso ante a sentença divina, não há necessidade de outro acusador. Deus para ele vale mais que mil. Há sobejas razões para se crer que Davi, a fim de impedir sua mente de acomodar-se numa falsa paz pelas lisonjas de sua corte, apossou-se do juízo divino em sua ofensa e sentiu que isso era em si mesmo um intolerável fardo, mesmo pressupondo que escaparia incólume das mãos de seus semelhantes.
Este deve ser o exercício de todo genuíno penitente. Pouco importa granjear nossa absolvição no tribunal do juízo humano, ou escapar ileso do castigo através da conivência de outrem, visto que temos de sofrer com uma consciência a acusar-nos diante de um Deus ofendido. E é provável que não haja melhor remédio contra a decepção na questão de nossos pecados do que volver nossos pensamentos para os recônditos de nosso ser, e depois concentrá-los em Deus, e mortificar toda e qualquer imaginação autocomplacente numpunçante senso do desprazer divino. Diante de um violento processo de interpretação, alguns nos fariam ler a segunda cláusula deste versículo assim:Para que sejas justificado quando falares, em conexão com o primeiro versículo do Salmo, e considerar que o mesmo não pode referir-se à sentença imediatamente precedente. Não dizer, porém, que isto interrompe a ordem dos versículos, que sentido poderia alguém aplicar à oração como então ocorre: Tem misericórdia de mim, para que sejas puro quando julgares? etc.
Qualquer dúvida sobre o significado das pa¬lavras, contudo, é completamente removida pela conexão em que são citadas na Epístola de Paulo aos Romanos [3.3, 4]: "Que importa se alguns deles foram infiéis? Sua infidelidade anulará a fide¬lidade de Deus? De modo algum! Seja Deus verdadeiro, e todo homem mentiroso. Como está escrito: Para que sejas justificado em tuas palavras e prevaleças quando julgares." Aqui as palavras que se acham diante de nós são citadas para provar-se a doutrina de que a justiça de Deus é evidente mesmo nos pecados dos homens, e sua verdade, na falsidade deles.
Para termos um claro discernimento de seu significado, é mister que ponderemos sobre o pacto que Deus fez com Davi. Havendo a salvação do mundo inteiro, em certo sentido, sido depositada com ele mediante este pacto, os inimigos da religião poderiam aproveitar a ocasião para exclamarem à vista de sua queda: "Aqui está uma coluna arruinada da Igreja, a qual agora converteu-se no miserável remanescente cujas esperanças repousavam em sua santidade! Nada poderia ser mais conspícuo do que a glória pela qual ele fora distinguido, a qual é agora uma marca de profunda desgraça a que fora ele reduzido! Quem, diante de tão grosseira queda, buscaria salvação em seu descendente?" Cônscio de que tais tentativas pudessem impugnar a justiça de Deus, Davi lança mão desta oportunidade para justificá-la, assumindo toda a culpa da transação.
Ele declara que Deus era justificado quando falava - não quando comunicou as promessas do pacto, embora haja quem entenda as palavras assim, mas ele teria sido justificado em pronunciar a sentença de condenação contra ele em virtude de seu pecado, o que não poderia ter feito senão por sua gratuita misericórdia. Duas formas de expressão são aqui empregadas, as quais têm o mesmo significado: para que sejas justificado quando falares, e sejas puro quando julgares. Quanto ao fato de Paulo, na citação já referida, ter alterado a última cláusula, e pode até parecer ter ele dado uma nova direção ao sentimento contido no versículo, mostrarei brevemente como as palavras eram aplicáveis ao propósito pelo qual foram citadas por ele. Ele as usa para provar que a fidelidade divina permanecia intocada pelo fato de haverem os judeus quebrado o pacto, e caíram da graça que ele havia prometido.
Ora, à primeira vista, pode não parecer que contenham a prova alegada. Mas sua conveniência será imediatamente vista se refletirmos sobre a circunstância para a qual já chamei a atenção. Na queda de alguém que era tão grande coluna da Igreja, tão ilustre como profeta e como rei, como Davi o fora, não podemos senão crer que muitos ficaram abalados e titubeavam em sua fé nas promessas. Muitos provavelmente se dispuseram a concluir, considerando a estreita relação em que Deus adotara Davi, que ele estava, até certo ponto, implicado em sua queda. Davi, contudo, repele insinuação tão injuriosa à honra divina, e declara que, em¬bora Deus o lançasse de ponta cabeça na destruição eterna, sua boca só se fecharia ou se abriria para reconhecer a divina e intocável justiça. A única saída que o apóstolo tinha para esta passagem, em sua citação, consiste em usar ele o verbo julgar num sentido passivo, e ler assim: para que venças, em vez depara que sejas puro. Nisto ele segue a Septuaginta, e é notório que os apóstolos não usavam os verbos com exatidão em suas citações do Velho Testa¬mento. Basta-nos que fiquemos satisfeitos com o fato de que a passagem corresponde ao propósito para o qual ela foi evocada pelo apóstolo.
A doutrina geral que recebemos da passagem consiste em que todo e qualquer pecado que os homens cometam lhes será de inteira responsabilidade, e jamais poderá comprometer a justiça divina. Os homens estão sempre dispostos a denunciar a administração divina, quando a mesma não corresponde à lógica do senso e razão humanos. Deus, porém, em qualquer tempo, ergue pessoas da mais profunda obscuridade à mais elevada distinção, ou, em contrapartida, permite que pessoas ocupem a mais conspícua condição para a seguir serem subitamente precipitadas para longe dela, para aprendermos do exemplo que é aqui posto diante de nós, e podemos julgar o procedimento divino com sobriedade, modéstia e reverência, e descansar satisfeitos com o fato de que ele é santo, e que suas obras, tanto quanto suas palavras, são caracterizadas por infalível retidão.
A conjunção no versículo, para que - para que sejas justificado, denota não tanto causa mas conseqüência. Não foi a queda de Davi, propriamente dita, que fez a glória da justiça divina se realçar. Não obstante, embora os homens, quando pecam, pareçam obscurecer a justiça divina, ela emerge da espúria tentativa para brilhar mais que nunca, sendo a peculiar obra de Deus fazer que das trevas resplandeça a luz.
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