O Calvinismo e o Governo de Deus Através da Lei
Verificamos facilmente que, para Calvino, a vontade soberana do Deus Criador não tem limites. Está presente em todas as coisas, mesmo naquelas que, aparentemente, são as mais insignificantes. Tudo revela Deus e expressa, de um modo ou de outro, Sua majestade e glória. Observamos, além disso, que esta vontade soberana de Deus não pode ser entendida se a separarmos da revelação que Ele faz de Si mesmo e da expressão de Sua vontade, na Sua lei, à qual o homem e toda a criação, na verdade, estão sujeitos. Corresponde ao pensamento de Calvino dizer que o homem se realiza como pessoa quando, em sua resposta a Deus, compartilha com Ele em Sua revelação. O próprio homem responde livremente à chamada de Deus, obedecendo à vontade soberana de Deus que, certamente, não o deixa encurralado, mas lhe serve de meio dentro do qual ele se realiza como homem.
Entendemos desta maneira, volto à minha terceira proposição: Para Calvino, toda a vida, inclusive aquilo que é chamado livremente “cultura”, é teônoma, isto é, tem a sua razão de ser enquanto sujeita a Deus e à Sua lei.
O que vem particularmente à luz, aqui, é o que Calvino pensa da lei. Se Deus, como Criador, está acima da lei (deus legibus solutus), sem que coisa alguma fora do Seu próprio Ser possa limitá-lo, o homem e todo o cosmo como ele estão sob a Lei, sujeitos a ela. Pois tudo aquilo que se refere à natureza da criação, em sua totalidade, está ligado pela lei de Deus: Separada destes laços, a existência da criação não tem sentido.
Assim, a imagem que nos vem à mente, quando consideramos o ponto de vista de Calvino a respeito da soberania divina, não é a de um tirano despótico, porém a de um grande arquiteto, termo com que Calvino designa a Deus freqüentemente. Quando falava da criação, Calvino podia referi-se facilmente ao seu aspecto arquitetônico, à sua arquitetura, como revelação da grandeza e da bondade de Deus. Para Calvino, a idéia da criação traz consigo a idéia de ordem, ordem em que tudo é construído com uma estrutura magnificente, uma expressão de beleza.
Entendendo desta maneira, é impossível ver, na idéia calvinista da soberania de Deus, sanção para qualquer espécie de soberania humana ilimitada. Mesmo que o homem possa ter sua autoridade sancionada por Deus, essa autoridade é limitada. A soberania humana é sempre restrita aos limites estabelecidos para ela.
Estes dois fatos, que integram totalmente o caráter do Deus soberano criador, como Ele se revela na Sua Palavra e na existência imensurável de toda a Sua criação, aparecem na idéia reformada da vocação.
A Lutero é atribuído o fato de ter provocado uma revolução de tipo copernicana na idéia devocação, em relação ao que se pensava dela na Idade Média. Esse conceito tinha sido aplicado apenas a algumas áreas especiais, chamadas de “ordens santas”, para as quais era necessária uma consagração especial. Na verdade, a idéia corrente era de que só o monasticismo constituía verdadeira vocação. Do mesmo modo, a vida de contemplação espiritual era mais valorizada do que a vida ativa. Ao reconhecer que toda a vida é santa quando reflete o propósito de Deus, Lutero faz a idéia de vocação estender-se para abranger toda atividade humana legítima.
O pleno impacto da revolucionária concepção de Lutero só pode ser sentido, contudo, se se escapa da espécie de dualismo em que ele mesmo caiu, ao distinguir entre um campo espiritual, íntimo, e uma esfera de ordenanças externas. Calvino, como já afirmei, nunca participou de tal ponto de vista dualístico. Na verdade, como Lutero também fez, Calvino rejeitou a idéia de que a natureza é o preâmbulo da graça, sustentando que Deus opera imediatamente no coração humano, através da Sua Palavra. Calvino, porém, não foi atingido pelas influências nominalistas que afetaram o sistema de pensamento de Lutero. O ponto de vista de Calvino, como demonstrei na seção precedente, não envolve de modo algum qualquer depreciação da atividade cultural, nem das instituições humanas. Na Reforma Calvinista, a idéia de vocação podia assumir a mais pura expressão de sua significação universal.
Para Calvino, a vida do homem, em sua totalidade, é compreendida como uma resposta à chamada de Deus. O homem é um ser do pacto. Como Lutero bem disse, o homem tem uma lei certa segundo a qual ele deve viver e morrer (certa regula tum vivendi tum moriendi). Em todos os aspectos de sua vida, o indivíduo é confrontado com o Deus soberano, perante quem ele deve prestar conta de si mesmo.
Na verdade, a vocação ou chamada de Deus tem sentido universal. A idéia reformada da vocação, contudo, não atinge sua expressão plena, separada da idéia de que há vocações particulares. A Reforma recuperou a idéia da santidade de todas as atividades humanas legítimas. O que está em jogo, portanto, não é se alguém é objeto de uma vocação particular, mas se na esfera em que exerce sua atividade, ele realiza o seu trabalho à luz da vocação divina e ali serve a Deus de todo o seu coração.
Um dos aspectos principais do ponto de vista de Calvino a respeito da vocação estava no fato de ele entender que a grande diversidade de dons tinha sido dada aos indivíduos, de acordo com a soberana vontade do Espírito Santo de Deus. Assim como não é apenas um raio de sol que ilumina o mundo, mas todos os raios se combinam num conjunto para realizar a tarefa dele, do mesmo modo Deus distribui amplamente os Seus dons, com o fim de manter a humanidade em mútua interdependência. Entre os homens há uma diversidade de dons que possibilitam uma diversidade de funções. Aquele que tem um lugar particular e uma tarefa, pressupõe que tem uma vocação para ela. Ao assumir este lugar e suas obrigações, o indivíduo tem uma vocação definida (certa vocatio). A vocação que alguém tem, é uma resposta obediente à divina vocação.
Em conexão com isto, Calvino empregou outra figura, a do corpo. Estendeu esta figura à Igreja, à família e ao Estado. As vocações seculares pertencem ao Estado. Os membros do Estado bem como os da Igreja, com seus diversos dons, estão unidos num corpo com funções mutuamente dependentes. Assim, Calvino desenvolveu aquilo que tem sido chamado um conceito “orgânico” da Igreja, do Estado e da família, etc.
A idéia reformada da vocação, especialmente como ela foi desenvolvida por Calvino, conduz à idéia de que a santidade prende-se àquilo que é chamado de “atividades culturais” do homem. Esta atividade cultural do homem é considerada como sendo uma resposta à chamada divina, que envolve uma tarefa cultural divinamente determinada. Portanto, a atividade cultural do homem é teônoma ou só tem sentido como uma resposta a Deus e à Sua Lei que, por sua vez, estabelece os seus laços e determina o seu significado. Este passo, na verdade, foi anteriormente dado por Calvino.
Calvino vislumbrava uma tal esfera orgânica na família. A família é uma ordenança da criação fundada por Deus. É uma eterna e indestrutível instituição divina. Ao chefe da família, no sentido restrito da palavra, o marido, foram concedidos dons especiais do Espírito. Em virtude de tais dons, ele foi dotado de autoridade, autoridade que foi chamado a exercer na esfera particular em que foi colocado. Dentro da família há uma relação especial de super-ordenação e subordinação. De acordo com a disposição divina, o marido é o cabeça da esposa, mas o é de tal modo, porém, que ele deve cuidar dela como cuida do seu próprio corpo. Na verdade, ele deve amá-la como Cristo amou a Sua Igreja e Se entregou a Si mesmo por ela. Por seu lado, a esposa deve ser submissa ao marido, no Senhor, oferecendo-lhe o amor e a obediência a que ele tem direito como seu cabeça. Acima dos dois – marido e mulher –, no entanto, está o Cabeça de todas as coisas, Jesus Cristo. Ambos, marido e mulher, são limitados em sua autoridade e atividade. Suas vidas, como casados, alcançam sua realização em sua obediência à Lei de Deus, naquilo que diz respeito à esfera para a qual foram chamados.
O ponto de vista de estrutura orgânica, de Calvino, está presente também em sua maneira de conceber o Estado, no qual ele viu uma analogia com a família. Ele relacionou com o Estado, também, sua idéia de diversidade do gênero humano, quanto aos dons e esferas de atividades. O Estado também é análogo a um corpo, no qual os vários membros têm seu próprio lugar e função. No Estado, os indivíduos são reunidos uns aos outros numa unidade orgânica, com diferentes posições na vida e diferentes funções.
Acima do Estado está o governo. A autoridade deste, ensinou Calvino, não se deriva, antes de tudo, da vontade do povo; antes de tudo, ela é dada por Deus. A fonte divina da autoridade do magistrado está no fato de ter ele recebido dons peculiares do Espírito para governar. Dentro da esfera do Estado, portanto, há uma autoridade, há um centro de poder divinamente legitimado.
Calvino partilhou da antiga idéia de que o governo está acima da Lei, porque ele é a sua fonte (princeps legibus solutus). De fato, ele admitiu que o governador é a fonte da Lei Positiva, que obriga nos limites do seu território. Nesse sentido, Calvino falou do governador como a lei personificada (lex animata). Na verdade, em sua concepção geral, contudo, Calvino sustentou que a autoridade de um governador é limitada. Um governador deve, ele mesmo, submeter-se à Lei Positiva, que vige nos limites do seu território. Lei Positiva, além do mais, é apenas uma expressão da Lei, pois, além dela, há a Lei Natural, aLei da Natureza, que Calvino associou estreitamente com a probidade. Cada Lei Positiva deve expressar o princípio da probidade. Se não for assim, será inútil.
Que significa para Calvino a Lei Natural? A resposta a esta questão não é simples. Como Lutero e Melanchthon, Calvino tinha viva apreciação pela Lei Romana largamente aceita, e interpretava os sistemas legais correntes. Ele compartilhou da distinção que o jurista romano Quintilhamo fez entre as leis dadas a cada um, pela natureza – isto é, o direito natural (iustus natura), e as leis que pertencem ao folk ou ao povo, em cujo contexto as leis recebem sua formal expressão judicial (iustum constitutione). A abertura de Calvino para com a Lei Romana neste ponto, envolvendo, como envolve, um acordo formal com a idéia de que há uma Lei Natural, está em consonância com a sua atitude, em geral, para com as realizações culturais humanas e, mais particularmente, está de acordo com a sua atitude para com o sistema de Lei Romana, no qual ele introduziu muito poucas correções. O fato de aceitar a Lei Natural não significa, contudo, que ele não a colocasse numa perspectiva que, naturalmente, pudesse mudar o seu significado. Sustentar um ponto de vista a respeito da Lei da Natureza, como Calvino fez, não significava entrar no campo dos Estóicos, com sua concepção de razão universal, ou num acordo substancial com a Lei Romana, em seu ponto de vista a respeito da origem e do sentido da Lei Natural.
Que Calvino pudesse aceitar a Lei Romana, de modo algum dependia de como ele interpretava seu lugar no plano providencial de Deus, ou envolvesse a necessidade de ele reinterpretá-la, fazendo suas distinções dentro do contexto de seu modo de entender a doutrina cristã. Aceitá-la era agradável à sua idéia de que Deus não tinha permitido ao mundo ir à ruína por causa do pecado, mas que o tinha preservado por meio de sua graça comum. A aceitação, por parte de Calvino, de alguma espécie de doutrina de Lei Natural reflete, também, sua interpretação do ensino da Escritura, no que se refere àquilo que entendem por natureza (= physcei) os que estão fora do âmbito da revelação especial de Deus e que, diferentemente dos judeus, não receberam os oráculos (= ta logia) de Deus. O fato de estes, não obstante, fazerem por natureza as coisas que estão escritas na Lei de Deus deve ser, segundo Calvino, atribuído às sensibilidades humanas distribuídas a todos os homens (= sensus communis), fato que reflete a vontade divina e que tem sido preservado do aniquilamento pela graça comum de Deus. Segue-se, deste fato, que Calvino não podia pensar na Lei da Natureza como um direito inerente à razão universal, entendida como separada da mensagem bíblica. A Lei da Natureza tinha de ser relacionada com a ordem da criação, através da qual, a despeito das devastações provocadas pelo pecado, Deus continua a revelar-se em toda parte e em todos os tempos.
Um governador, então – que na verdade, para Calvino, é a fonte das Leis Positivas inscritas nos códigos de seu território -, está sujeito à Lei da Natureza. Segundo Calvino, esta Lei da Natureza é o princípio e o objetivo de todas as Leis Positivas, e é a Lei que estabelece os seus limites. Um governador, portanto, está sujeito a uma Lei (da Natureza) cuja autoridade excede, em muito, à de quaisquer leis que ele mesmo possa gerar. Em última análise, ele está sujeito a Deus, que é a fonte final de toda lei e de toda autoridade.
De fato, o respeito que Calvino tinha para com o magistrado e para com os dons de governar, era enorme. O homem é obrigado a aproximar-se de um governador como de alguém dotado, pelo Espírito do próprio Deus, de extraordinários dons que o qualificam para governar. Contudo, esta autoridade humana, conquanto seja sancionada pela autoridade divina, é sempre restrita, sendo demarcada pelos limites próprios do ofício de governador.
O ponto de vista de Calvino a respeito da vocação, tanto da atividade na esfera do lar, do Estado, do magistério ou da Igreja, exibe sempre estas duas faces. Há, de um lado, a idéia de que tudo, na vida, é resposta à vocação universal de Deus, cuja vontade soberana abrange todas as coisas e cuja providência se estende a cada pormenor da existência humana. De outro lado, há a idéia paralela de que a resposta humana é canalizada por vocações específicas, de modo que cada um tem o seu lugar e desempenha suas funções dentro do corpo.
Caberia ao grande estadista e teólogo holandês Abraham Kuyper, unir as linhas do ensino reformado e desenvolver a idéia da “esfera soberana” ou, como ela tem sido chamada, “soberania nas esferas individuas da vida”, pois Deus, cuja soberania se estende sobre a totalidade da vida, tem ordenado várias esferas na sociedade, cada uma das quais dispõe de uma soberania dentro de sua própria órbita. Calvinho já tinha compreendido, contudo, que há uma diversidade de dons e vocações, e que cada uma tem de ser compreendida em relação com Deus e com Sua soberana vontade. Segundo Calvino, bem como segundo Kuyper, cada um pode servir de acordo com seus dons peculiares, suas capacidades especiais e em seu próprio lugar, e ser agraciado com o conhecimento de que foi incumbido de realizar uma particular vocação de Deus.
O ponto de vista de Calvino a respeito da diversidade de vocações, estabelecidas por Deus, torna imperativo reconstruir a difundida noção dos tempos modernos, concernente à natureza da cultura e da sociedade. Até aqui tenho empregado a palavra cultura em sentido mais amplo e indiscriminado, sem levar em conta a questão do uso comum do termo. Segundo este uso, cultura é o termo geral que denota a ordem trazida à existência pela agência humana. Tem-se como cultura tudo aquilo que não surge pronto, como parte integrante da natureza. Assim, ela inclui toda linguagem, todas as leis, todas as convenções sociais, etc.
Na maior parte das vezes, quando um contemporâneo discute um tópico tal como “Cristianismo e Cultura”, ele tem em mente o termo cultura interpretado deste modo. A cultura abrangendo todo engenho humano e seus produtos é posta em contraste com aquilo que pertence à esfera do divino. Introduz-se, deste modo, uma discussão de relação do Cristianismo – como sendo de origem divina – com aquilo que é produto da engenhosidade humana, no mais amplo sentido da palavra.
O ponto de vista de Calvino a respeito da Natureza e da Lei Natural sugere que esta maneira de ver precisa ser reconstruída. Seu ponto de vista não admite que toda lei e toda estrutura (que não é parte da natureza) sejam compreendidas como produtos do engenho humano. O próprio engenho humano (para Calvino), ao contrário, adquire sentido dentro da estrutura estabelecida pelas ordenações divinas, que a prerrogativa humana está longe de poder mudar.
Outra vez Calvino não admite que se considerem o divino e o humano em bloco. A atividade humana é plena de sentido só dentro dos limites estabelecidos pela vontade soberana de Deus, expressa em Sua Lei. A Lei de Deus constitui uma permanente estrtura para a atividade humana, fora da qual esta atividade perde o significado. A atividade cultural humana, na verdade a totalidade da cultura, é teônoma e só tem sentido em sua relação com Deus e Sua Lei.
Entendemos desta maneira, volto à minha terceira proposição: Para Calvino, toda a vida, inclusive aquilo que é chamado livremente “cultura”, é teônoma, isto é, tem a sua razão de ser enquanto sujeita a Deus e à Sua lei.
O que vem particularmente à luz, aqui, é o que Calvino pensa da lei. Se Deus, como Criador, está acima da lei (deus legibus solutus), sem que coisa alguma fora do Seu próprio Ser possa limitá-lo, o homem e todo o cosmo como ele estão sob a Lei, sujeitos a ela. Pois tudo aquilo que se refere à natureza da criação, em sua totalidade, está ligado pela lei de Deus: Separada destes laços, a existência da criação não tem sentido.
Assim, a imagem que nos vem à mente, quando consideramos o ponto de vista de Calvino a respeito da soberania divina, não é a de um tirano despótico, porém a de um grande arquiteto, termo com que Calvino designa a Deus freqüentemente. Quando falava da criação, Calvino podia referi-se facilmente ao seu aspecto arquitetônico, à sua arquitetura, como revelação da grandeza e da bondade de Deus. Para Calvino, a idéia da criação traz consigo a idéia de ordem, ordem em que tudo é construído com uma estrutura magnificente, uma expressão de beleza.
Entendendo desta maneira, é impossível ver, na idéia calvinista da soberania de Deus, sanção para qualquer espécie de soberania humana ilimitada. Mesmo que o homem possa ter sua autoridade sancionada por Deus, essa autoridade é limitada. A soberania humana é sempre restrita aos limites estabelecidos para ela.
Estes dois fatos, que integram totalmente o caráter do Deus soberano criador, como Ele se revela na Sua Palavra e na existência imensurável de toda a Sua criação, aparecem na idéia reformada da vocação.
A Lutero é atribuído o fato de ter provocado uma revolução de tipo copernicana na idéia devocação, em relação ao que se pensava dela na Idade Média. Esse conceito tinha sido aplicado apenas a algumas áreas especiais, chamadas de “ordens santas”, para as quais era necessária uma consagração especial. Na verdade, a idéia corrente era de que só o monasticismo constituía verdadeira vocação. Do mesmo modo, a vida de contemplação espiritual era mais valorizada do que a vida ativa. Ao reconhecer que toda a vida é santa quando reflete o propósito de Deus, Lutero faz a idéia de vocação estender-se para abranger toda atividade humana legítima.
O pleno impacto da revolucionária concepção de Lutero só pode ser sentido, contudo, se se escapa da espécie de dualismo em que ele mesmo caiu, ao distinguir entre um campo espiritual, íntimo, e uma esfera de ordenanças externas. Calvino, como já afirmei, nunca participou de tal ponto de vista dualístico. Na verdade, como Lutero também fez, Calvino rejeitou a idéia de que a natureza é o preâmbulo da graça, sustentando que Deus opera imediatamente no coração humano, através da Sua Palavra. Calvino, porém, não foi atingido pelas influências nominalistas que afetaram o sistema de pensamento de Lutero. O ponto de vista de Calvino, como demonstrei na seção precedente, não envolve de modo algum qualquer depreciação da atividade cultural, nem das instituições humanas. Na Reforma Calvinista, a idéia de vocação podia assumir a mais pura expressão de sua significação universal.
Para Calvino, a vida do homem, em sua totalidade, é compreendida como uma resposta à chamada de Deus. O homem é um ser do pacto. Como Lutero bem disse, o homem tem uma lei certa segundo a qual ele deve viver e morrer (certa regula tum vivendi tum moriendi). Em todos os aspectos de sua vida, o indivíduo é confrontado com o Deus soberano, perante quem ele deve prestar conta de si mesmo.
Na verdade, a vocação ou chamada de Deus tem sentido universal. A idéia reformada da vocação, contudo, não atinge sua expressão plena, separada da idéia de que há vocações particulares. A Reforma recuperou a idéia da santidade de todas as atividades humanas legítimas. O que está em jogo, portanto, não é se alguém é objeto de uma vocação particular, mas se na esfera em que exerce sua atividade, ele realiza o seu trabalho à luz da vocação divina e ali serve a Deus de todo o seu coração.
Um dos aspectos principais do ponto de vista de Calvino a respeito da vocação estava no fato de ele entender que a grande diversidade de dons tinha sido dada aos indivíduos, de acordo com a soberana vontade do Espírito Santo de Deus. Assim como não é apenas um raio de sol que ilumina o mundo, mas todos os raios se combinam num conjunto para realizar a tarefa dele, do mesmo modo Deus distribui amplamente os Seus dons, com o fim de manter a humanidade em mútua interdependência. Entre os homens há uma diversidade de dons que possibilitam uma diversidade de funções. Aquele que tem um lugar particular e uma tarefa, pressupõe que tem uma vocação para ela. Ao assumir este lugar e suas obrigações, o indivíduo tem uma vocação definida (certa vocatio). A vocação que alguém tem, é uma resposta obediente à divina vocação.
Em conexão com isto, Calvino empregou outra figura, a do corpo. Estendeu esta figura à Igreja, à família e ao Estado. As vocações seculares pertencem ao Estado. Os membros do Estado bem como os da Igreja, com seus diversos dons, estão unidos num corpo com funções mutuamente dependentes. Assim, Calvino desenvolveu aquilo que tem sido chamado um conceito “orgânico” da Igreja, do Estado e da família, etc.
A idéia reformada da vocação, especialmente como ela foi desenvolvida por Calvino, conduz à idéia de que a santidade prende-se àquilo que é chamado de “atividades culturais” do homem. Esta atividade cultural do homem é considerada como sendo uma resposta à chamada divina, que envolve uma tarefa cultural divinamente determinada. Portanto, a atividade cultural do homem é teônoma ou só tem sentido como uma resposta a Deus e à Sua Lei que, por sua vez, estabelece os seus laços e determina o seu significado. Este passo, na verdade, foi anteriormente dado por Calvino.
Calvino vislumbrava uma tal esfera orgânica na família. A família é uma ordenança da criação fundada por Deus. É uma eterna e indestrutível instituição divina. Ao chefe da família, no sentido restrito da palavra, o marido, foram concedidos dons especiais do Espírito. Em virtude de tais dons, ele foi dotado de autoridade, autoridade que foi chamado a exercer na esfera particular em que foi colocado. Dentro da família há uma relação especial de super-ordenação e subordinação. De acordo com a disposição divina, o marido é o cabeça da esposa, mas o é de tal modo, porém, que ele deve cuidar dela como cuida do seu próprio corpo. Na verdade, ele deve amá-la como Cristo amou a Sua Igreja e Se entregou a Si mesmo por ela. Por seu lado, a esposa deve ser submissa ao marido, no Senhor, oferecendo-lhe o amor e a obediência a que ele tem direito como seu cabeça. Acima dos dois – marido e mulher –, no entanto, está o Cabeça de todas as coisas, Jesus Cristo. Ambos, marido e mulher, são limitados em sua autoridade e atividade. Suas vidas, como casados, alcançam sua realização em sua obediência à Lei de Deus, naquilo que diz respeito à esfera para a qual foram chamados.
O ponto de vista de estrutura orgânica, de Calvino, está presente também em sua maneira de conceber o Estado, no qual ele viu uma analogia com a família. Ele relacionou com o Estado, também, sua idéia de diversidade do gênero humano, quanto aos dons e esferas de atividades. O Estado também é análogo a um corpo, no qual os vários membros têm seu próprio lugar e função. No Estado, os indivíduos são reunidos uns aos outros numa unidade orgânica, com diferentes posições na vida e diferentes funções.
Acima do Estado está o governo. A autoridade deste, ensinou Calvino, não se deriva, antes de tudo, da vontade do povo; antes de tudo, ela é dada por Deus. A fonte divina da autoridade do magistrado está no fato de ter ele recebido dons peculiares do Espírito para governar. Dentro da esfera do Estado, portanto, há uma autoridade, há um centro de poder divinamente legitimado.
Calvino partilhou da antiga idéia de que o governo está acima da Lei, porque ele é a sua fonte (princeps legibus solutus). De fato, ele admitiu que o governador é a fonte da Lei Positiva, que obriga nos limites do seu território. Nesse sentido, Calvino falou do governador como a lei personificada (lex animata). Na verdade, em sua concepção geral, contudo, Calvino sustentou que a autoridade de um governador é limitada. Um governador deve, ele mesmo, submeter-se à Lei Positiva, que vige nos limites do seu território. Lei Positiva, além do mais, é apenas uma expressão da Lei, pois, além dela, há a Lei Natural, aLei da Natureza, que Calvino associou estreitamente com a probidade. Cada Lei Positiva deve expressar o princípio da probidade. Se não for assim, será inútil.
Que significa para Calvino a Lei Natural? A resposta a esta questão não é simples. Como Lutero e Melanchthon, Calvino tinha viva apreciação pela Lei Romana largamente aceita, e interpretava os sistemas legais correntes. Ele compartilhou da distinção que o jurista romano Quintilhamo fez entre as leis dadas a cada um, pela natureza – isto é, o direito natural (iustus natura), e as leis que pertencem ao folk ou ao povo, em cujo contexto as leis recebem sua formal expressão judicial (iustum constitutione). A abertura de Calvino para com a Lei Romana neste ponto, envolvendo, como envolve, um acordo formal com a idéia de que há uma Lei Natural, está em consonância com a sua atitude, em geral, para com as realizações culturais humanas e, mais particularmente, está de acordo com a sua atitude para com o sistema de Lei Romana, no qual ele introduziu muito poucas correções. O fato de aceitar a Lei Natural não significa, contudo, que ele não a colocasse numa perspectiva que, naturalmente, pudesse mudar o seu significado. Sustentar um ponto de vista a respeito da Lei da Natureza, como Calvino fez, não significava entrar no campo dos Estóicos, com sua concepção de razão universal, ou num acordo substancial com a Lei Romana, em seu ponto de vista a respeito da origem e do sentido da Lei Natural.
Que Calvino pudesse aceitar a Lei Romana, de modo algum dependia de como ele interpretava seu lugar no plano providencial de Deus, ou envolvesse a necessidade de ele reinterpretá-la, fazendo suas distinções dentro do contexto de seu modo de entender a doutrina cristã. Aceitá-la era agradável à sua idéia de que Deus não tinha permitido ao mundo ir à ruína por causa do pecado, mas que o tinha preservado por meio de sua graça comum. A aceitação, por parte de Calvino, de alguma espécie de doutrina de Lei Natural reflete, também, sua interpretação do ensino da Escritura, no que se refere àquilo que entendem por natureza (= physcei) os que estão fora do âmbito da revelação especial de Deus e que, diferentemente dos judeus, não receberam os oráculos (= ta logia) de Deus. O fato de estes, não obstante, fazerem por natureza as coisas que estão escritas na Lei de Deus deve ser, segundo Calvino, atribuído às sensibilidades humanas distribuídas a todos os homens (= sensus communis), fato que reflete a vontade divina e que tem sido preservado do aniquilamento pela graça comum de Deus. Segue-se, deste fato, que Calvino não podia pensar na Lei da Natureza como um direito inerente à razão universal, entendida como separada da mensagem bíblica. A Lei da Natureza tinha de ser relacionada com a ordem da criação, através da qual, a despeito das devastações provocadas pelo pecado, Deus continua a revelar-se em toda parte e em todos os tempos.
Um governador, então – que na verdade, para Calvino, é a fonte das Leis Positivas inscritas nos códigos de seu território -, está sujeito à Lei da Natureza. Segundo Calvino, esta Lei da Natureza é o princípio e o objetivo de todas as Leis Positivas, e é a Lei que estabelece os seus limites. Um governador, portanto, está sujeito a uma Lei (da Natureza) cuja autoridade excede, em muito, à de quaisquer leis que ele mesmo possa gerar. Em última análise, ele está sujeito a Deus, que é a fonte final de toda lei e de toda autoridade.
De fato, o respeito que Calvino tinha para com o magistrado e para com os dons de governar, era enorme. O homem é obrigado a aproximar-se de um governador como de alguém dotado, pelo Espírito do próprio Deus, de extraordinários dons que o qualificam para governar. Contudo, esta autoridade humana, conquanto seja sancionada pela autoridade divina, é sempre restrita, sendo demarcada pelos limites próprios do ofício de governador.
O ponto de vista de Calvino a respeito da vocação, tanto da atividade na esfera do lar, do Estado, do magistério ou da Igreja, exibe sempre estas duas faces. Há, de um lado, a idéia de que tudo, na vida, é resposta à vocação universal de Deus, cuja vontade soberana abrange todas as coisas e cuja providência se estende a cada pormenor da existência humana. De outro lado, há a idéia paralela de que a resposta humana é canalizada por vocações específicas, de modo que cada um tem o seu lugar e desempenha suas funções dentro do corpo.
Caberia ao grande estadista e teólogo holandês Abraham Kuyper, unir as linhas do ensino reformado e desenvolver a idéia da “esfera soberana” ou, como ela tem sido chamada, “soberania nas esferas individuas da vida”, pois Deus, cuja soberania se estende sobre a totalidade da vida, tem ordenado várias esferas na sociedade, cada uma das quais dispõe de uma soberania dentro de sua própria órbita. Calvinho já tinha compreendido, contudo, que há uma diversidade de dons e vocações, e que cada uma tem de ser compreendida em relação com Deus e com Sua soberana vontade. Segundo Calvino, bem como segundo Kuyper, cada um pode servir de acordo com seus dons peculiares, suas capacidades especiais e em seu próprio lugar, e ser agraciado com o conhecimento de que foi incumbido de realizar uma particular vocação de Deus.
O ponto de vista de Calvino a respeito da diversidade de vocações, estabelecidas por Deus, torna imperativo reconstruir a difundida noção dos tempos modernos, concernente à natureza da cultura e da sociedade. Até aqui tenho empregado a palavra cultura em sentido mais amplo e indiscriminado, sem levar em conta a questão do uso comum do termo. Segundo este uso, cultura é o termo geral que denota a ordem trazida à existência pela agência humana. Tem-se como cultura tudo aquilo que não surge pronto, como parte integrante da natureza. Assim, ela inclui toda linguagem, todas as leis, todas as convenções sociais, etc.
Na maior parte das vezes, quando um contemporâneo discute um tópico tal como “Cristianismo e Cultura”, ele tem em mente o termo cultura interpretado deste modo. A cultura abrangendo todo engenho humano e seus produtos é posta em contraste com aquilo que pertence à esfera do divino. Introduz-se, deste modo, uma discussão de relação do Cristianismo – como sendo de origem divina – com aquilo que é produto da engenhosidade humana, no mais amplo sentido da palavra.
O ponto de vista de Calvino a respeito da Natureza e da Lei Natural sugere que esta maneira de ver precisa ser reconstruída. Seu ponto de vista não admite que toda lei e toda estrutura (que não é parte da natureza) sejam compreendidas como produtos do engenho humano. O próprio engenho humano (para Calvino), ao contrário, adquire sentido dentro da estrutura estabelecida pelas ordenações divinas, que a prerrogativa humana está longe de poder mudar.
Outra vez Calvino não admite que se considerem o divino e o humano em bloco. A atividade humana é plena de sentido só dentro dos limites estabelecidos pela vontade soberana de Deus, expressa em Sua Lei. A Lei de Deus constitui uma permanente estrtura para a atividade humana, fora da qual esta atividade perde o significado. A atividade cultural humana, na verdade a totalidade da cultura, é teônoma e só tem sentido em sua relação com Deus e Sua Lei.
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