Os  rótulos geralmente são confusos, especialmente quando o conteúdo da  embalagem muda. Suco de uva pode virar vinagre com o passar dos anos na  adega, porém o rótulo não muda junto com as mudanças na substância. O  mesmo vale para o termo evangélico".
Desde  o "Ano do Evangélico", correspondente ao bicentenário de nossa nação  (no caso os EUA) em 1976, o termo - pelo menos na América do Norte -  veio a identificar aqueles que salientam um determinada marca da  política, uma abordagem moralista e freqüentemente legalista da vida, e  certo tipo de imitação, "cafona" de estilo de evangelismo. Para alguns o  termo compreende o emocionalismo que eles vêem na televisão religiosa.  Para outros, hipocrisia e justiça própria. E aí há as memórias que  muitos de nós, que fomos criados como evangélicos, temos: ambientes  familiares fortes e cuidadosos; um senso de pertencer a um mesmo lugar,  com os amigos que gostam de conversar das "coisas do Senhor".
Independente do seu passado, é importante entender o significado do termo "evangélico".
As  pessoas só começaram a usar o rótulo no século XVI, designando aqueles  que abraçaram o Evangelho que havia - num sentido bem real - sido  recuperado pela Reforma Protestante naquele século. "Evangélico" vem de  "evangel", que é o termo grego para "evangelho". Deste modo, os  "evangélicos" eram luteranos e calvinistas que queriam recuperar o  evangel e proclamá-lo dos altos dos telhados. Era uma designação  empregada para colocar os Protestantes num agudo contraste com os  Católicos Romanos e "seitas". Mas para entender por que estes  Protestantes pensavam que eram realmente aqueles que recuperaram o  verdadeiro e bíblico Evangelho, temos que entender o que era aquele  evangelho.
O "Evangel"
A  Reforma era uma coleção de "solas" - esta é a palavra latina para  "somente". Eles vibravam ao dizer "Sola Scriptura!", significando,  "Somente as Escrituras". A Bíblia era a "única regra para fé e prática"  (Westminster) para os reformadores. Você vê que a igreja acreditava que a  Bíblia era totalmente inspirada e infalível, mas a igreja era o único  intérprete infalível da Bíblia. Os Reformadores acreditavam que a  Tradição era importante e que os Cristãos não a deveriam interpretar por  eles mesmos, mas que todos os cristãos sejam clérigos ou leigos,  deveriam chegar a um comum entendimento e interpretação das Escrituras  juntos. A Bíblia não deveria ser exclusivamente deixada aos "espertos",  mas isso nunca significou para os Reformadores que cada cristão deveria  presumir que ele ou ela pudessem chegar a interpretações da Bíblia sem a  orientação e assistência da Igreja.
O  principal ponto de "Sola Scriptura" então, era este: Não deveria ser  permitido à Igreja fazer regras ou doutrinas fora das Escrituras. Não  existem novas revelações, nem papas que ouvem diretamente a voz de Deus,  e nada que a Bíblia não apresente deveria ser ordenado aos cristãos.
O  segundo "sola" era "Solo Christus", "Somente Cristo". Isto não queria  dizer que os Reformadores não criam na Trindade - pois o Pai e o  Espírito Santo eram igualmente divinos, mas que Cristo, sendo o  "Deus-Homem" e nosso único Mediador, é o "Homem de frente" para a  Trindade. "Aquele que me vê a Mim, vê ao Pai que me enviou", disse  Jesus. Num tempo em que meros seres humanos estão tomando o lugar de  Cristo como Mediador entre Deus e cristãos, os reformadores proclamaram  juntamente com Paulo: "Há somente um Deus e um Mediador entre Deus e os  homens, Jesus Cristo, homem" (1 Tim. 2: 5). Eu cresci em igrejas onde  tínhamos "apelos ao altar" e esta pode ser a coisa mais próxima que nós  cristãos modernos temos do "chamado ao altar" medieval, a missa. Em  nossas igrejas, o pastor atuaria como mediador, vendo nossa mão  levantada "enquanto cada cabeça está baixa e cada olho fechado", e nós  iríamos para a frente onde ele estava, o chamado "altar" e repetiríamos  uma oração após ele. Então ele afirmaria que, tendo "feito a oração",  nós agora estaríamos salvos. Eu me lembro de ter sido "salvo" novamente,  e novamente. Quando me senti culpado após uma particular e desagradável  noite de sábado, lá ia eu novamente ao altar. Cristãos medievais  estavam sempre apavorados até a morte, por ver que poderiam morrer com  pecados não confessados e assim iriam para o inferno. Assim, a missa era  uma oportunidade de "estar em dia com Deus" e de "encher a banheira"  que tinha tido um vazamento por causa do pecado.
Os  reformadores, porém, diriam àqueles dentre nós que vivem ansiosos  quanto ao fato de estar ou não dentro do favor de Deus, ou se estamos  cedendo demais ou obtendo vitória: "Somente Cristo!" É a Sua vida e não a  nossa, que conta para a nossa salvação; foi a Sua morte sacrificial e  ressurreição vitoriosa que nos assegurou vida eterna. Porque Ele  "entregou tudo"; o Seu mérito cobre totalmente o nosso demérito.
E  isso nos traz ao próximo "sola" - "Sola Gracia" (Somente a Graça!) Roma  acreditava na graça; de fato, a Igreja insistia que, sem a graça,  ninguém poderia ser salvo. Só que a graça era o tipo de "um pó mágico"  que ajudava a pessoa a viver uma vida melhor - com a ajuda de Deus. Os  reformadores, em contrapartida, diziam que a graça não é uma substância  que Deus nos dá para vivermos uma vida melhor, mas sim uma atitude em  relação a nós, aceitando-nos como justos por causa da santidade de  Cristo, e não nossa.
Por  isso eles lançaram o quarto "somente" (sola), que sabemos ser "Sola  Fide" (somente a fé). Considerando que somos salvos somente pela graça,  como obtemos essa graça? Roma argumentava que essa graça era distribuída  pela igreja através dos vários métodos que os "altos escalões" haviam  inventado. Fé mais amor, ou fé mais boas obras, ou alguma coisa assim,  tornou-se a fórmula para a salvação. Os reformadores ao contrário,  insistiam que do início ao fim, "salvação é obra do Senhor" (João 2: 9).  "O Espírito dá vida; o homem em nada colabora" (João 6: 55). "Não  depende da decisão, nem do esforço do homem, mas da misericórdia de  Deus" (Rom 9: 16). Assim a fé em si mesma é um dom da graça de Deus e  não se pode dizer dela que seja "a coisa" que nós fazemos na salvação:  Pois nós não somos nascidos da vontade da carne ou da vontade do homem,  mas de Deus" ( João 1: 13).
No  minuto em que uma pessoa olha para "Cristo somente" para sua salvação,  dependendo da Sua vida santa e sacrifício substitutivo na cruz, naquele  exato momento ela ou ele é justificado (posto em posição de justiça,  declarado justo, santo, perfeito). A própria santidade de Cristo é  imputada (creditada) na conta do crente, como se ele ou ela tivessem  vivido uma vida perfeita de obediência - mesmo enquanto aquela pessoa  continua a cair repetidamente no pecado durante sua vida. O Cristão não é  alguém que está olhando no espelho espiritual, medindo a proximidade de  Deus pela experiência e progresso na santidade, mas é antes alguém que  está "olhando para Cristo, o Autor e Consumador da nossa fé"( Heb. 12:  2). Resumindo, é o estilo de vida de Cristo, não o nosso, que atinge os  requisitos de Deus, e é por Ele que a justiça pode ser transferida para  nossa conta, pela fé (olhando somente para Cristo).
Finalmente,  os reformadores disseram que tudo isso significa que Deus é quem tem  todo o crédito. "Soli Deo Gloria" (Somente a Deus seja a Glória) era a  forma que eles colocavam - nosso último "sola", que quer dizer, "A Deus  somente seja a Glória" Um evangélico, portanto, era centrado em Deus;  alguém que estava convencido de que Deus havia feito tudo e que não  restava nada que o homem considerasse seu a não ser seu próprio pecado.  Isto não apenas transformou radicalmente a vida devocional dos crentes  que o abraçaram, mas toda a estrutura social também.
Numa  velha taverna do século XVII em Heidelberg, na Alemanha, lê-se no alto  "Soli Deo Gloria!" Johann Sebastian Bach, o famoso compositor, assinou  todas as suas composições com aquele slogan da Reforma. Do mesmo modo,  um outro compositor, Handel, declarou, "Que privilégio é ser membro da  igreja evangélica, saber que meus pecados estão perdoados. Se nós  fossemos deixados à mercê de nós mesmos, meu Deus, o que seria de nós?"  Grandes e nobres vidas requerem grandes e nobres pensamentos, e a  soberania e a graça de Deus são, para o crente, grandes e nobres  pensamentos. Os reformadores disseram a Roma o que J.B.Philipps, o  tradutor inglês da Bíblia, disse à igreja contemporânea: "O Deus de  vocês é muito pequeno".
A  Reforma, a qual produziu o termo "evangélico", também recuperou a  doutrina bíblica do "sacerdócio universal de todos os santos" e a noção  bíblica do chamado e vocação. A igreja tinha dividido os cristãos em  primeira classe (aqueles que serviriam no "ministério cristão em tempo  integral") e segunda classe (aqueles que estavam empregados em serviços  "seculares"). Os reformadores concediam, por direito, que todos os  cristãos são sacerdotes e são, por isso, ministros de Deus, independente  de estarem varrendo uma sala para a glória de Deus, moldando uma peça  de cerâmica, defendendo um cliente na corte, curando um paciente,  ordenhando uma vaca, ou conduzindo uma congregação no louvor. Não há o  "secular" e o "sagrado" - Deus criou o mundo inteiro e fez a vida neste  mundo como algo inseparável de nossa própria humanidade.
Como nós ajustamos as coisas hoje?
A questão, é claro, é se "evangélico" hoje significa o que significou há quinhentos anos.
Em  primeiro lugar, muitos dos evangélicos de hoje têm uma visão das  Escrituras inferior à que a igreja de Roma tinha no século XVI.  Instituições evangélicas de peso duvidam da confiabilidade da Bíblia e  de sua infalibilidade - a menos, claro, que se trate daquilo que eles já  decidiram que é verdade. Outros acreditam que a Bíblia é inerrante,  porém acrescentam novas regras e revelações ao cânon. "A Bíblia é  suficiente", nos aconselhariam os reformadores. Os sermões, com muita  freqüência, são "pop-inspiracionalistas" discursos superficiais de "Como  criar filhos positivos" ou "Como ter uma auto-estima" em detrimento de  sérias exposições das Escrituras. De acordo com o Gallup, "Os EUA são um  país de iletrados bíblicos", ainda que 60 milhões deles se consideram  "evangélicos".
Em  segundo lugar, muitos evangélicos modernos também não acreditam que  Cristo é suficiente. Às vezes pessoas muito boas e nobres substituem  Cristo como nosso único Mediador, assim como o Espírito Santo. Enquanto  louvamos o Espírito juntamente com o Pai e o Filho, o Filho tem este  papel único de nosso único advogado e Mediador. Não devemos olhar para a  obra do Espírito nos nossos corações, mas para a obra de cristo na  cruz. Às vezes, nós temos mediadores humanos que não são o Deus-Homem  Jesus Cristo. Precisamos de outras coisas pelo meio, como a figura do  pastor no "apelo" do altar ao qual me referi anteriormente. Não muito  tempo atrás eu vi um tele-evangelista de sucesso tirando o fone do  gancho e informando seus telespectadores que "esta é sua conexão com  Deus". Uma banda secular, "Depeche Mode", canta sobre "Seu próprio Jesus  Pessoal" que pode ser contactado ao se pegar no fone e fazendo sua  confissão. Enquanto estivermos neste assunto, também deveríamos  mencionar que foi a venda de indulgências de John Tetzel (redução do  período no purgatório em troca de valores em dinheiro) que inspirou as  "Noventa e Cinco Teses "de Lutero, desencadeando a Reforma. "Quando a  moeda bate no cofre", o coro cantava, "uma alma do purgatório é  vivificada". Será que isso realmente é diferente da venda da salvação  que temos visto na televisão cristã, rádio, e mesmo em muitas igrejas?  Dinheiro e salvação têm sido distorcidos para serem uma coisa só no meio  de muitos de nós. "Eles vendem salvação a você", canta Ray Stevens,  "enquanto eles cantam 'Amazing Grace' ('Graça Maravilhosa')".
Muitos  evangélicos hoje crêem que "Somente a Graça" (sola gracia) é algo como  livre-arbítrio, uma decisão, uma oração, uma ida até a frente, uma  segunda bênção, algo que nós façamos por Deus que nos dará confiança de  sermos alvo do Seu favor. Doutrinas como eleição, justificação e  regeneração são discutidas quase que nunca, porque elas mostram o quadro  de uma humanidade que é incapaz e nem ao menos pode cooperar com Deus  em matéria de salvação. Se nós formos salvos é Deus e Deus somente que  deverá faze-lo.
E  sobre "Somente a Fé" (sola fide)? Muitos evangélicos acham que a fé não  é suficiente. Se um indivíduo crê em Cristo e daí sai e o anuncia, será  que a fé é suficiente? Alguns insistem que a fé mais a entrega, ou a fé  mais a obediência, ou fé mais um sincero desejo de servir ao Senhor  servirão como uma fórmula. O fato de que os evangélicos hoje lutam com  estas questões indica que nós não ouvimos o "som seguro" de "Somente a  Fé" em nossas igrejas. Fé é suficiente porque Cristo é suficiente.
Como  se comparariam os evangélicos de hoje com os seus predecessores em  matéria de "Somente a Deus seja a Glória"? Auto-estima, glória-própria,  centralidade do "eu" parecem dominar a pregação, ensino e a literatura  popular do mundo evangélico. Os evangélicos de hoje sabem muito pouco do  grande Deus dos reformadores - um Deus que faz tudo conforme o Seu  agrado, em relação aos céus e às pessoas sobre a terra e "que faz tudo  conforme o conselho da Sua vontade" (Dn. 4; Ef. 1: 11). Os evangélicos  hoje, refletindo sua cultura e sociedade mais ampla, estão intimidados  por um Deus que é Deus. Porém que outro Deus é digno de confiança? Em  poucas palavras, que outro Deus existe? Louvar ao Deus de uma  experiência pessoal ou o Deus de preferência pessoal é louvar um ídolo.  Os reformadores levaram isso a sério, e aqueles que quiserem ser  evangélicos genuínos também devem faze-lo.
Conclusão
Muitas  pessoas se perguntam por que o povo da "Reforma" parece bravo. Ninguém  quer estar ao redor de pessoas bravas - e eu não gostaria de ser  conhecido como uma pessoa "brava". Mas precisamos encarar o fato de que  estes são tempos de grande infidelidade para o povo de Deus. A nós foi  dada uma fé rica, com Cristo no centro. Porém trocamos nossa rica dieta  por um saco de pipocas e estamos mal nutridos. Se os evangélicos terão a  mesma saúde espiritual que tiveram em épocas passadas, eles terão que  voltar para as verdades que fazem de "evangélicos" "evangélicos". A  Bíblia - nosso único fundamento; Cristo - nossa única esperança; Graça -  nosso único evangelho; Fé - nosso único instrumento; a Glória de Deus -  nosso único alvo; o Sacerdócio de todos os santos - nosso único  ministério. Este evangelicalismo original ainda é suficiente para fazer,  mesmo de nossas menores vitórias, algo muito grande.
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