O  Velho Testamento fornece os antecedentes necessários para a  interpretação desta bem-aventurança. No princípio, ser "pobre"  significava passar necessidades literalmente materiais. Mas,  gradualmente, porque os necessitados não tinham outro refúgio a não ser  Deus,  a "pobreza" recebeu nuances espirituais e  passou a ser identificada como uma hu¬milde dependência de Deus. Por  isso o salmista intitulou-se "este aflito" que clamou a Deus em sua  necessidade, "e o Senhor o ouviu, e o livrou de todas as suas  tribulações".  O "aflito" (homem pobre) no Velho  Testamento é aquele que está sofrendo e não tem capacidade de salvar-se  por si mesmo e que, por isso, busca a salvação de Deus, reconhecendo que  não tem direito à mesma. Esta espécie de pobreza espiritual foi  especialmente elogiada em Isaías. São "os aflitos e necessitados", que  "buscam águas, e não as há", cuja "língua se seca de sede", aos quais  Deus promete abrir "rios nos altos desnudos, fontes no meio dos vales" e  tornar "o deserto em açudes de águas, e a terra seca em mananciais".  O "pobre" também foi descrito como "o contrito e abatido de espírito",  para  quem Deus olha (embora seja "o Alto, o Sublime, que habita a  eternidade, o qual tem o nome de Santo"), e com quem se deleita em  habitar.  É para esse que o ungido do Senhor  proclamaria as boas novas da salvação, uma profecia que Jesus  conscientemente cumpriu na sinagoga de Nazaré: "O Espírito do Senhor  está sobre mim, porque o Senhor me ungiu, para pregar boas-novas aos  quebrantados."  Mais ainda, os ricos inclinavam-se  a transigir com o paganismo que os rodeava; eram os pobres que  permaneciam fiéis a Deus. Por isso, a riqueza e o mundanismo, bem como a  pobreza e a piedade, andavam juntas.
Assim,  ser "humilde (pobre) de espírito" é reconhecer nossa pobreza espiritual  ou, falando claramente, a nossa falência espiritual diante de Deus,  pois somos pecadores, sob a santa ira de Deus, e nada merecemos além do  juízo de Deus. Nada temos a oferecer, nada a reivindicar, nada com que  comprar o favor dos céus.
"Nada  em minhas mãos eu trago, Simplesmente à tua cruz me apego; Nu, espero  que me vistas; Desamparado, aguardo a tua graça; Mau, à tua fonte corro;  Lava-me, Salvador, ou morro."
Esta  é a linguagem do pobre (humilde) de espírito. Nosso lugar é ao lado do  publicano da parábola de Jesus, clamando com os olhos baixos: "Deus, tem  misericórdia de mim, pecador!" Como Calvino escreveu: "Só aquele que,  em si mesmo, foi reduzido a nada, e repousa na misericórdia de Deus, é  pobre de espírito." 
Esses,  e tão somente esses, recebem o reino de Deus. Pois o reino de Deus que  produz salvação é um dom tão absolutamente de graça quanto imerecido.  Tem de ser aceito com a dependente humildade de uma criancinha. Assim,  bem no começo do Sermão do Monte, Jesus contradisse todos os juízos  humanos e todas as expectativas nacionalistas do reino de Deus. O reino é  concedido ao pobre, não ao rico; ao frágil, não ao poderoso; às  criancinhas bastante humildes para aceitá-lo, não aos soldados que se  vangloriam de poder obtê-lo através de sua própria bravura. Nos tempos  de nosso Senhor, quem entrou no reino não foram os fariseus, que se  consideravam ricos, tão ricos em méritos que agradeciam a Deus por seus  predicados: nem os zelotes, que sonhavam com o estabelecimento do reino  com sangue e espada; mas foram os publicanos e as prostitutas, o refugo  da sociedade humana, que sabiam que eram tão pobres que nada tinham para  oferecer nem para receber. Tudo o que podiam fazer era clamar pela  misericórdia de Deus; ele ouviu o seu clamor.
Talvez  o melhor exemplo desta mesma verdade seja a igreja nominal de  Laodicéia, à qual João recebeu ordem de enviar uma carta do Cristo  glorificado. Ele citou as complacentes palavras dela, e acrescentou o  seu próprio comentário: "Pois dizes: Estou rico e abastado, e não  preciso de cousa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável,  pobre, cego e nu."  Esta igreja visível, apesar de  toda a sua profissão cristã, não era de modo algum verdadeiramente  cristã. Auto-satisfeita e superficial, era composta (de acordo com  Jesus) de cegos e mendigos nus. Mas a tragédia era que não o admitiam.  Eram ricos, não pobres, de espírito.
Ainda  hoje, a condição indispensável para se receber o reino de Deus é o  reconhecimento de nossa pobreza espiritual. Deus continua despedindo  vazios os ricos.  Como disse C. H. Spurgeon: "Para subirmos no reino é preciso rebaixarmo-nos em nós mesmos."
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