29 de nov. de 2010

O Sofrimento de Paulo - João Calvino


Por isso sofro dificuldades (2Tm 2.9-11). Aqui, ele antecipa uma possível objeção, visto que aos olhos dos ignorantes sua prisão denegria a credibilidade de seu evangelho. Ele reconhece que, diante de todas as aparências externas, outra coisa não é senão um criminoso, mas acrescenta que isso não impedia o evangelho de continuar sua livre trajetória. Ao contrário, o que ele sofre é para o bem-estar dos eleitos, porquanto seu propósito era confirmá-los. Tal é a inabalável coragem dos mártires de Cristo, quando se sentem tão enobrecidos pelo conhecimento da boa causa a que servem, que são capazes de suplantar não só dores e torturas corporais, mas até mesmo todo e qualquer gênero de desgraça. Além do mais, todos os piedosos devem tomar alento ao verem os ministros do evangelho sendo assaltados e insultados pelos adversários, de modo que nem por isso reverenciem menos o seu ensinamento; ao contrário, dêem glória a Deus ao verem como, pelo divino poder, o evangelho despedaça todos os obstáculos que o mundo põe em seu curso.

Se não fôssemos excessivamente devotados à carne, tal fato, por si só, seria suficiente para consolar-nos em meio às perseguições, ou seja, o conhecimento de que, ainda quando somos oprimidos pela crueldade dos ímpios, não obstante o evangelho se estende e se difunde mais amplamente. Por mais que tentem, estão mui longe de obscurecer ou de extinguir a luz do evangelho; o máximo que podem é fazê-la brilhar ainda mais claramente. Portanto, suportemos com alegria; ou, ao menos, com uma mente tranqüila; não importa se o nosso corpo e o nosso bom nome estejam encarcerados, contanto que a verdade de Deus se irrompa e seja difundida livremente por todo o mundo.

Portanto, suporta todas as coisas. Ele mostra, à luz de seus resultados, que sua prisão, longe de ser motivo de reprovação, é na verdade muitíssimo proveitosa para os eleitos. Ao dizer que Timóteo devia suportar todas as coisaspox causa dos eleitos, com isso ele demonstra que se preocupava mais com a edificação da Igreja do que com seu próprio bem-estar. Pois está pronto não só a morrer, mas ainda a ser tido no número dos criminosos, se porventura tal coisa promovesse o bem-estar da Igreja. Nesta passagem, o ensino é o mesmo que em Colossenses 1.24, onde ele diz que "cumpro na minha carne o que resta das aflições de Cristo, por amor do seu corpo, que é a Igreja". Os papistas interpretam audaciosamente este texto, afirmando que a morte de Paulo foi uma satisfação por nossos pecados; o próprio texto, porém, refuta completamente tal idéia. Como se Paulo reivindicasse mais para sua morte do que para a confirmação dos piedosos na fé, pois ali imediatamente se deduz, à guisa de explicação, que a salvação dos crentes se acha fundada exclusivamente em Cristo. Uma abordagem mais completa de sua intenção se encontra na passagem que acabo de citar.

Com eterna glória. Eis o propósito da salvação que obtemos em Cristo. Pois o alvo de nossa salvação consiste em vivermos para Deus, e isso começa com nossa regeneração e se plenifica com nossa total libertação das misérias desta vida mortal, quando Deus nos tomar e nos reunir em seu reino. A esta salvação acrescenta-se a participação na glória celestial, glória esta de caráter divinal; e assim, para magnificar a graça de Cristo, ele chama nossa salvação de glória eterna.

Fiel é a palavra. Ele usa esta frase como prefácio ao que vem a seguir, porquanto nada há mais estranho à sabedoria da carne do que crer que devemos morrer a fim de vivermos, e que a morte é o pórtico de entrada para a vida. Deduzimos de outras passagens que era o costume de Paulo usar este prefácio antes de algo especialmente importante ou difícil de se crer. O significado é que a única forma de participarmos da vida e glória de Cristo é antes participando de sua morte e humilhação; como diz em Romanos 8.29, todos os eleitos foram "predestinados para serem conformados à imagem de seu Filho". Isso foi escrito tanto para exortar quanto para consolar os crentes. Quem poderia fracassar ao ser estimulado por esta exortação de que não devemos desesperar-nos por causa de nossas aflições, visto que teremos um feliz livramento delas? O mesmo pensamento abate e ameniza todas as amarguras geradas pela cruz, visto que nem dores, nem tormentos, nem reprovações, nem morte nos podem apavorar, uma vez que as compartilhamos com Cristo; e, especialmente, porque todas essas coisas são precursoras de nosso triunfo. Portanto, através de seu exemplo pessoal, Paulo injeta ânimo em todos os crentes para que, com o coração iluminado, pudessem suportar as aflições nas quais já têm uma prelibação da glória futura. Mas, se porventura isso for demais para crermos movidos por nossa própria iniciativa, e se a cruz nos subjugar e toldar nossa visão, nos impedindo de discernir a Cristo, lembremo-nos de empunhar este escudo: "Fiel é a palavra." Onde Cristo se faz presente, também presente está a vida e a bem-aventurança. Devemos manter-nos firmes a esta comunhão que temos com Cristo, para que não morramos em nós mesmos, mas com ele, para que sejamos companheiros de sua glória. Morte, aqui, significa a mortificação externa de que fala em 2 Coríntios 4.10.

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