1 de out. de 2010

Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos - Calvino



Em 1 Co 13.1-3, Paulo toma como ponto de partida a eloqüência, a qual, em si mesma, é um dom muito excelente, mas que, quando se vê divorciado do amor, de nada serve para alguém obter o favor divino. Ao referir-se a línguas dos anjos, ele faz uso de hipérbole para algo notável ou raro. Todavia, prefiro dar-lhe uma interpretação precisa, como se referindo aos diferentes gêneros de linguagens. Pois os coríntios, que avaliavam o valor de todas as coisas pela reputação que podiam dar-lhes, e não pelos resultados que se produziam, davam muito valor à habi¬lidade de falar muitas línguas. Paulo está dizendo: "Podeis ter a posse de todas as línguas, não só as de todos os homens, mas as dos próprios anjos, e ainda muito mais. Contudo, a impressão que se tem é que Deus não vos considera como sendo de mais valor que um símbalo, por assim dizer, se porventura não possuis o amor."

E se tiver o dom de profecia. Paulo também reduz a nada o valor deste dom, embora o classificasse acima de todos os demais, caso ele não esteja sujeito ao amor. Conhecer todos os mistérios pode dar a idéia de haver sido adicionado à profecia à guisa de explicação; mas, visto que conhecimento vem logo em seguida, e de haver feito menção separada do conhecimento num contexto anterior, deve-se ponderar se porventura o conhecimento de mistérios não é usado aqui em vez de sabedoria. Ao mesmo tempo que não devemos ser dogmáticos aqui, todavia sinto-me muitíssimo atraído para este ponto de vista.

A fé da qual ele faz referência aqui é de caráter especial, como se faz óbvio das palavras que a acompanham, ou seja: "ao ponto de remover montanhas". Portanto, os sofistas estão desperdiçando seu tempo em interpretar este versículo à revelia, ao ponto de roubarem o poder da fé. Por isso, à luz do fato de a palavra 'fé' possuir muitos matizes de significado o leitor de discernimento deve observar bem o sentido em que ela é usada aqui. Ora, Paulo se constitui em seu próprio intérprete (segundo já realcei), porquanto, aqui, ele limita a fé a milagres. É a isso que Crisóstomo chama "a fé de sinais ou milagres"; e nós, "a fé particular", visto que ela não se prende a Cristo em sua plenitude, mas somente ao seu poder de efetuar milagres. Esta é a razão por que os homens podem, às vezes, exercer essa fé, mesmo não possuindo o Espírito de santificação, como foi o caso de Judas.

E se eu doar todos os meus bens. Considerada em si mesma, esta coragem certamente merece o mais elevado louvor. Porém, visto que a renúncia de coisas às vezes tem suas raízes no egoísmo, e não na genuína generosidade; ou, por outro lado, porque um homem generoso às vezes se vê destituído dos demais aspectos do amor (já que um sentimento generoso é apenas um elemento do amor), pode suceder que uma ação, por mais louvável que seja em outros aspectos, pode ser considerada pelos homens como algo realmente esplêndido, e fazê-la objeto de seus louvores, e no entanto ser tida como de absoluta nulidade aos olhos de Deus.

E se entregar meu corpo. Indubitavelmente, Paulo está falando, aqui, do martírio, o qual se constitui no ato mais excelente e supremo de todos. Pois o que é mais admirável do que aquela inabalável firmeza de caráter, quando alguém não hesita em oferecer sua vida em testemunho do evangelho? Todavia, até mesmo isto Deus também reputa como sendo de nenhum préstimo, caso o coração seja destituído de amor. Não obstante, o gênero de castigo que ele menciona aqui não era o único geralmente infligido aos cristãos. Pois lemos que, naqueles dias, os tiranos que almejavam desarraigar a Igreja procediam contra eles [cristãos] usando mais a espada do que o fogo, excetuando Nero que, em sua demência, também recorria ao incêndio. Mas tudo indica que o Espírito está a predizer, pela instrumentalidade de Paulo, que gênero de perseguições estava por vir. Porém, isto é incidental. O ponto-mestre deste versículo é o seguinte: visto que o amor é a única regra que deve governar nossas ações, e a única diretriz para o correto uso dos dons divinos, Deus não aprova nada que esteja destituído de amor, não importa quão magnificentes os conceitos humanos venham a ser. Pois, sem o amor, a mais bela de todas as virtudes não passa de mera aparência, um ruído vazio de significação, não mais digna que a moínha; em resumo, não passa de algo grosseiro e ofensivo.

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