22 de out. de 2010

Cristianismo versus Dualismo - C. S. Lewis












Pois bem, então o ateísmo é simplista. E vou lhes fa lar de outro ponto de vista igualmente simplista que chamo de "cristianismo água-com-açúcar". De acordo com ele, existe um bom Deus no Céu e tudo o mais vai muito bem, obrigado - o que deixa completamente de lado as doutrinas difíceis e terríveis a respeito do pecado, do inferno, do diabo e da redenção. Os dois pontos de vista são filosofias pueris.

Não convém exigir uma religião simples. Afinal de contas, as coisas no mundo real são complexas. Parecem simples, mas não são. A mesa à qual estou sentado pa rece simples, mas peça a um cientista que diga do que ela é realmente feita: você ouvirá uma longa história a respeito dos átomos e de como as ondas luminosas refle tem-se neles e chegam ao nervo óptico, provocando um efeito no cérebro. Assim, o que chamamos de "enxergar a mesa" nos leva a mistérios e complicações aparentemen te inesgotáveis. Uma criança que faz uma oração infantil é algo singelo. Se você estiver disposto a parar por aí, ótimo. Mas, se você não se contentar com isso (coisa que acontece bastante no mundo moderno) e quiser levar avante o questionamento sobre o que realmente acon tece, tem de estar preparado para enfrentar dificuldades. Se exigimos algo que vá além da simplicidade, é tolice nos queixarmos de que esse algo a mais não é simples. Com muita freqüência, entretanto, esse procedi mento tolo é adotado por pessoas que não têm nada de tolas, mas que, consciente ou inconscientemente, que rem destruir o cristianismo. Essas pessoas apresentam uma versão da religião cristã própria para crianças de seis anos e fazem dela o objeto de seu ataque. Quando tentamos explicar a doutrina cristã tal como é entendida por um adulto instruído, elas se queixam de que estamos dando um nó na cabeça delas, de que tudo o que dize mos é complicado demais e de que, se Deus realmente existisse, teria feiro a "religião" simples, pois a simplici dade é bela etc. Esteja sempre em guarda contra este tipo de gente, sujeitos que trocam de argumento a cada minuto e só nos fazem perder tempo. Note o absurdo da idéia de um Deus que "faz uma religião simples": co mo se a "religião" fosse algo inventado por Deus, e não a sua afirmação de certos fatos inalteráveis a respeito de sua própria natureza.

A experiência me diz que a realidade, além de com plicada, é quase sempre estranha. Não é precisa, nem óbvia, nem previsível. Por exemplo, quando você des cobre que a Terra e os outros planetas giram em torno do Sol, pensa naturalmente que todos os planetas de vem se comportar da mesma maneira, que são separa dos por distâncias iguais ou distâncias que aumentam proporcionalmente, ou que devem aumentar ou dimi nuir de tamanho à medida que se afastam do Sol. No en tanto, não encontramos nem métrica nem método (que possamos compreender) nos tamanhos ou nas distâncias. Além disso, alguns planetas possuem uma lua; outros, quatro; alguns, nenhuma; e um planeta tem um anel.

A realidade, com efeito, é algo que ninguém poderia adivinhar. Este é um dos motivos pelo qual acredito no cristianismo. E uma religião que ninguém poderia adi vinhar. Se ela nos oferecesse o tipo de universo que es­peraríamos encontrar, eu acharia que ela havia sido in ventada pelo homem. Porém, a religião cristã não é nada daquilo que esperávamos; apresenta todas as mudanças inesperadas que as coisas reais possuem. Deixemos de lado, portanto, todas as filosofias pueris e suas respostas simplistas. O problema não é nada simples, e a respos ta tampouco.

E qual é o problema? E um universo cheio de coi sas evidentemente más e aparentemente sem sentido, mas que ao mesmo tempo contém criaturas como nós, que têm a consciência dessa maldade e desse absurdo. Existem só dois pontos de vista que conseguem con templar todos esses fatos. Um deles é o cristianismo, se gundo o qual estamos num mundo bom que se perdeu, mas que ainda assim conserva a memória de como de veria ser. O outro ponto de vista chama-se dualismo. Dualismo é a crença de que, na raiz de todas as coisas, há duas forças iguais e independentes, uma delas boa, a outra má. O universo é o campo de batalha no qual travam uma guerra sem fim. Creio que, ao lado do cris tianismo, o dualismo é a crença mais viril e sensata exis tente no mercado. Porém, traz em si uma armadilha.

Os dois poderes, ou espíritos, ou deuses - o bom e o mal - são tidos como independentes um do outro. Ambos existem eternamente. Nenhum deles gerou o ou tro, nenhum deles tem mais direito que o outro de cha mar a si mesmo de "Deus". Cada um deles, presumi velmente, considera a si mesmo o Bem, e ao outro, o Mal. Um deles aprecia o ódio e a crueldade; o outro, o amor e a misericórdia; e cada qual sustenta sua própria visão das coisas. No entanto, o que temos em mente quando chamamos um deles de Poder Benigno, e o outro, de Poder Maligno? Talvez queiramos dizer simplesmen te que preferimos um ao outro — como alguém pode preferir uma cerveja a um vinho doce; ou então queira mos dizer que o que quer que cada um deles pense a seu respeito, e independentemente de nossas preferên cias humanas imediatas, um deles está efetivamente er rado, enganado ao se considerar benigno. Ora, se tudo o que queremos dizer é que preferimos o primeiro po der, temos de desistir definitivamente dessa conversa de Bem e de Mal, pois o Bem é aquilo que devemos preferir quaisquer que sejam os nossos sentimentos momentâ neos. Se "ser bom" significasse apenas aderir ao lado que por acaso nos agrada, o Bem não mereceria ser chama do assim. Logo, o que queremos dizer é que um dos po­deres está errado, enquanto o outro está certo.

Mas no momento em que dizemos isto, insere-se no universo um terceiro fator, distinto dos outros dois poderes: uma lei, ou padrão, ou regra geral do Bem à qual o primeiro poder se submete, e o outro, não. Se os dois poderes são julgados por esse padrão, então o próprio padrão ou o Ser que o criou está além e acima de qual quer um dos poderes. E ele o Deus verdadeiro. Na rea lidade, quando dizemos que um poder é bom e o outro é mau, entendemos que um está em relação harmonio sa com o Deus verdadeiro e supremo, e o outro, não.

O mesmo argumento pode ser apresentado de ou tra maneira. Se o dualismo é real, o poder maligno deve ser um ente que ama o Mal pelo Mal. Na realidade, po rém, não encontramos ninguém que aprecie o Mal só porque é o Mal. O mais próximo disso seria a crueldade. Mas, na vida real, as pessoas são cruéis por um de dois motivos: por sadismo, ou seja, por causa de uma perver são sexual que faz da dor um objeto de prazer sensual, ou pela busca de algum benefício externo - dinheiro, poder, segurança. O prazer, o dinheiro, o poder e a se gurança, considerados em si mesmos, são coisas boas. A maldade consiste em tentar obtê-los pelos métodos errados, ou de forma errada, ou em excesso. Não quero dizer, de modo algum, que não sejam terrivelmente per versas as pessoas que agem assim. Digo apenas que a perversidade, quando a examinamos de perto, revela-se como um jeito errado de buscar o Bem. Podemos deci dir ser bons por amor à própria bondade, mas não po demos ser maus por amor à maldade. Podemos agir de forma bondosa mesmo quando não nos sentimos bon dosos e não há uma recompensa para agir assim; a bonda de é simplesmente a atitude correta. Ninguém, no en tanto, é cruel simplesmente porque a crueldade é má; só o é porque ela lhe parece agradável ou lhe é útil. Em outras palavras, a maldade não consegue sequer ser má como a bondade é boa. A bondade, por assim dizer, é ela mesma, ao passo que a maldade é apenas o Bem per vertido. E, para que haja uma perversão, é preciso que antes haja uma perfeição. Chamamos o sadismo de per versão sexual, mas, para chamá-lo assim, temos de ter a idéia de uma sexualidade normal. Conseguimos distin guir claramente um do outro porque a perversão pode ser explicada pela normalidade, mas a normalidade não pode ser explicada pela perversão. Segue-se que o Po der Maligno, que supostamente está em pé de igualdade com o Poder Benigno e ama o Mal pelo Mal como aque le ama o Bem pelo Bem, não passa de um bicho-papão. Para ser mau, ele tem de querer algo de bom e buscá-lo da forma errada: tem de ter impulsos originariamente bons para depois pervertê-los. Mas, se é mau, não pode fornecer a si mesmo nem as coisas boas e desejáveis nem os bons impulsos passíveis de perversão. Tem de receber ambos do Poder Benigno. Nesse caso, não é independen te. Faz parte do mundo do Poder do Bem: ou foi gerado por este, ou por um poder superior a ambos.

Vamos colocar o assunto de forma mais clara ainda. Para que seja mau, esse poder tem de existir e ter inte ligência e vontade. Ora, a existência, a inteligência e a vontade são, em si mesmas, coisas boas. Logo, esse po der tem de receber essas qualidades do Poder do Bem: mesmo para ser mau, tem de emprestá-las ou roubá-las do seu opositor. Você começa a perceber agora por que o cristianismo sempre disse que o diabo é um anjo caí do? Isto não é apenas uma historieta para crianças. E o reconhecimento real do fato de que o Mal é um para sita, não um ente original. As forças que fazem com que o Mal possa subsistir foram dadas pelo Bem. Todas as coisas que propiciam que um homem mau seja efetiva mente mau são, em si mesmas, qualidades: resolução, esperteza, boa aparência, a própria existência. E por cau sa disso que o dualismo, a rigor, não funciona.

Devo admitir, por outro lado, que o verdadeiro cristianismo (o qual não deve ser confundido com o cristianismo água-com-açúcar) é bem mais próximo do dualismo do que as pessoas imaginam. Uma das coisas que me surpreenderam quando pela primeira vez li a sério o Novo Testamento são as menções freqüentes a uma Força Negra em ação no universo — um poderoso espírito maligno, causa principal da morte, da doença e do pecado. A diferença é que o cristianismo pensa que essa Força Negra foi criada por Deus e que no momento da criação era benigna, tendo-se perdido depois. O cris tianismo concorda com o dualismo em que o universo está em guerra, mas discorda que seja uma guerra en tre forças independentes. Considera-a antes uma guer ra civil, uma rebelião, e afirma que vivemos na parte do universo ocupada pelos rebeldes.

Um território ocupado pelo inimigo — assim é este mundo. O cristianismo é a história de como o rei por direito desembarcou disfarçado em sua terra e nos cha ma a tomar parte numa grande campanha de sabota­gem. Quando você vai à igreja, na verdade vai receber os códigos secretos mandados pelos nossos amigos: não é por outro motivo que o inimigo fica tão ansioso para nos impedir de freqüentá-la. Ele apela à nossa vaidade, preguiça e esnobismo intelectual. Sei que alguém vai me perguntat: "Você quer mesmo, na época em que vi vemos, trazer de novo à baila a figura do nosso velho amigo, o diabo, com seus chifres e seu rabo?" Bem, o que a "época em que vivemos" tem a ver com o assunto, não sei. Quanto aos chifres e ao rabo, não faço muita questão deles. Quanto ao mais, porém, minha resposta é "sim". Não afirmo conhecer coisa alguma sobre a apa­rência pessoal do diabo, mas, se alguém realmente qui sesse conhecê-lo melhor, eu diria a essa pessoa: "Não se preocupe. Se você realmente quiser travar relações com ele, vai conseguir. Se vai gostar ou não da experiência, isso é outro assunto."

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