6 de ago. de 2010

Distinção entre Justiça e Retidão Divina - A. W. Tozer



Nas inspiradas Escrituras, é quase impossível fazer a distinção entre justiça e retidão. A mesma palavra no original é traduzida por justiça ou retidão, quase que sendo, alguém pode imaginar, um capricho do tradutor.

O Antigo Testamento fala da justiça de Deus em uma linguagem clara e satisfatória, e tão bela quanto a encontrada em qualquer parte da literatura humana. Quando a destruição de Sodoma foi anunciada, Abraão intercedeu pelos justos que estavam na cidade, lembrando a Deus de que sabia que Ele agiria por Si mesmo na necessidade humana. "Longe de Ti o fazeres tal coisa, matares o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio; longe de Ti. Não fará justiça o Juiz de toda a terra?" (Gn 18.25).

Deus, na visão dos salmistas e profetas de Israel, era um soberano todo-poderoso, supremo e exaltado, que reinava em justiça. "Justiça e direito são o fundamento do Teu trono" (SI 89.14). A respeito do tão esperado Messias, profetizou-se que, quando voltasse, Ele julgaria as pessoas com justiça e os pobres com juízo. Os santos compassivos, ultrajados pela injustiça dos governantes do mundo, oraram: "O SENHOR, Deus das vinganças, ó Deus das vinganças, resplandece. Exalta-Te, ó juiz da terra; dá o pago aos soberbos. Até quando, SENHOR, os perversos, até quando exultarão os perversos?" (SI 94.1-3). Esta oração não deve ser vista como um pretexto para a vingança pessoal, mas como um anseio por ver a justiça moral prevalecer na sociedade humana.

Homens como Davi e Daniel reconheceram sua própria iniqüidade em contraste à justiça de Deus e, conseqüentemente, suas orações de arrependimento tiveram grande poder e eficácia. "A Ti, ó SENHOR, pertence a justiça, mas a nós, o corar de vergonha" (Dn 9.7). E quando o juízo de Deus, que há muito está contido, começa a descer sobre o mundo, João vê os santos que venceram em pé em um mar de vidro mesclado de fogo, segurando as harpas de Deus nas mãos; eles entoam o cântico de Moisés e o do Cordeiro, cujo tema é a justiça divina. "Grandes e admiráveis são as Tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os Teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temerá e não glorificará o Teu nome, ó Senhor? Pois só Tu és santo; por isso, todas as nações virão e adorarão diante de Ti, porque os Teus atos de justiça se fizeram manifestos" (Ap 15.4).



A justiça incorpora a idéia de eqüidade moral, e a injustiça é exata¬mente o oposto; é iniqüidade, a falta de eqüidade nos pensamentos e atos humanos. O juízo é a aplicação da eqüidade em situações morais e pode ser favorável ou desfavorável, dependendo se quem está sendo julgado tem sido justo ou injusto no coração e na conduta.

Às vezes, ouvimos: "Deus é quem faz justiça", referindo-se a algum ato que sabemos que Ele realizará. E um erro pensar e falar assim, pois isso pressupõe um princípio de justiça fora de Deus que O compele a agir de determinada forma. Sem dúvida, não existe este princípio. Se houvesse, ele seria superior a Deus, pois apenas uma força maior pode incitar a obediência. A verdade é que não há e jamais poderá haver algo fora da natureza divina que possa fazer com que Deus desça a um nível inferior. Todas as razões de Deus vêm do interior de Seu ser incriado. Nada penetrou no ser de Deus desde a eternidade, nada foi removido e modificado.

A justiça, quando usada em referência a Deus, é um nome que damos ao modo de ser de Deus, nada mais; e quando Deus age com justiça, Ele não está agindo assim para enquadrar-se em um critério independente, mas simplesmente agindo como Ele mesmo em determinada situação. Como o ouro é um elemento em si mesmo e nunca pode mudar nem se ajustar, mas é ouro onde quer que seja encontrado, assim Deus é Deus, sempre, único e plenamente Deus, e não pode ser outra coisa senão Ele. Tudo no universo é bom à medida que se ajusta à natureza de Deus e mau quando deixa de fazê-lo. Deus é Seu próprio princípio de existência própria da justiça moral, e quando Ele condena os maus ou recompensa os justos, Ele simplesmente age segundo Seu íntimo, sem ser influenciado por algo que não seja Ele mesmo.

Tudo isto parece — mas apenas parece — destruir a esperança de justificação do pecador que se arrepende. O filósofo e santo cristão, Anselmo, arcebispo de Cantuária, buscou uma solução para a visível contradição entre a justiça e a misericórdia de Deus. "Como poupas o ímpio", perguntou a Deus, "se Tu és justo por excelência?" Em seguida, firmou bem os olhos em Deus em busca da resposta, pois sabia que ela estava no que Deus é. As descobertas de Anselmo podem ser parafraseadas desta forma: o ser de Deus é unitário; não se constitui de várias partes que funcionam em harmonia, mas simplesmente uma parte. Nada há na justiça de Deus que impeça o exercício de Sua misericórdia. Pensar em Deus como às vezes pensamos em um tribunal onde um generoso juiz, compelido pela lei, condena um homem à morte com lágrimas e apologias é pensar no verdadeiro Deus de forma totalmente deturpada. Deus nunca se contradiz. Nenhum dos atributos de Deus é incompatível entre si.

A compaixão de Deus emana de Sua bondade, e bondade sem justiça não é bondade. Deus nos poupa porque Ele é bom; no entanto, Ele não poderia ser bom se não fosse justo. Quando Deus castiga os iníquos, conclui Anselmo, é apenas porque isto condiz com o que eles merecem; e quando Deus poupa os ímpios, é apenas porque isso condiz com a bondade de Deus; assim, Deus faz o que o torna o Deus bom por excelência. Esta é a razão que deve ser compreendida, não para que se possa crer, mas porque já crê.

Uma solução mais simples e mais comum para a questão de como Deus pode ser justo e ainda justificar o injusto é encontrada na doutrina cristã da redenção. É que, por meio da obra de Cristo na expiação, a justiça não é violada, mas cumprida quando Deus poupa um pecador. A teologia da redenção ensina que a misericórdia não se efetiva em um homem até que a justiça tenha feito sua parte. O castigo justo para o pecado foi necessário quando Cristo, nosso Substituto, morreu por nós na cruz. Embora possa parecer desagradável aos ouvidos do homem natural, esta idéia sempre foi aprazível aos ouvidos da fé. Milhões de pessoas foram moral e espiritualmente transformadas por esta mensagem, levaram uma vida de intenso poder moral e morreram, por fim, em paz, confiando nela.

Esta mensagem de justiça dada e misericórdia em ação vai além de uma boa teoria teológica; ela anuncia um fato que se fez necessário pela nossa profunda necessidade humana. Por causa do nosso pecado, todos nós estamos sob a sentença de morte, um juízo que vem à tona quando a justiça confronta nossa situação moral. Quando a infinita eqüidade deparou-se com a nossa constante e obstinada iniqüidade, houve uma terrível luta entre elas, uma batalha que Deus venceu e sempre deverá vencer. Mas quando o pecador arrependido entrega-se a Cristo em busca de salvação, a situação moral é revertida. A justiça confronta a situação transformada e manifesta um justo homem de fé. Deste modo, a justiça, na verdade, passa para o lado dos filhos confiantes de Deus. Este é o significado destas palavras ousadas do apóstolo João: "Se confessarmos os nossos pecados, Ele [Deus] é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça" (I Jo 1.9).

No entanto, a justiça de Deus prevalecerá para sempre contra o pe¬cador com toda força. A vaga e tênue esperança de que Deus também é Alguém que castiga os ímpios tornou-se um ópio letal para a consciência de milhões. Ela silencia seus temores e permite que eles pratiquem todas as formas aprazíveis de iniqüidade, embora a morte se aproxime a cada dia que passa e o convite ao arrependimento continue sendo recusado. Como seres moralmente responsáveis, não ousamos menosprezar nosso futuro eterno.

Jesus, Teu sangue e justiça
São meu bem maior, minhas vestes ie glória;
Em meio aos mundos perversos, nestes campos de batalha,
Com alegria levanto a cabeça.

Com ousadia me levantarei em Teu grande dia,
Pois quem me acusará?
Por meio deles, estou completamente absolvido —
Do pecado e do medo, da culpa e da vergonha.
(Conde N. L. von Zinzendorf1)

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Nikolaus Ludwig von Zinzendorf (1700-1760), clérigo, patrono e bispo alemão da Igreja da Morávia. Educado sob as influências pietistas, logo mostrou afinidades para com a perseguida e quase extinta Irmandade da Morávia (freqüentemente chamada de Irmandade da Boêmia), à qual ofereceu refúgio. A colônia chamava-se Herrnhut. Queria que a colônia formasse um grupo dentro da Igreja Luterana, influenciando outros no sentido de uma experiência religiosa mais profunda, mas rendeu-se à sua insistência para tornar a fundar a antiga Irmandade da Morávia. Sua ênfase no papel da emoção na religião influenciou profundamente a teologia protestante do século 19. Foi um dos marcos na restauração da vida normal da Igreja, por sua inclusividade e prática do amor fraternal. Os irmãos morávios formaram uma das maiores forças missionárias de todos os tempos.

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